Desenho colorido mostrando andares inferiores do edifício Palácio da Indústria

O palácio desocupado e as ruas vazias

A rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela.

João do Rio em A Rua

Desenhar no Centro faz treinar outras habilidades além do traço. A primeira é não se distrair com a quantidade de passantes, bem mais numerosos que em outros lugares da cidade.

Ainda que, em sábados anteriores, o calçadão estivesse mais cheio. Deve ser a crise, o fim do mês, quando o salário se revela finito, ou as duas coisas juntas.

É provável que essas pessoas que andam pelo Centro no início da tarde de um sábado sejam trabalhadoras do comércio (e vejo mais moças que rapazes). É quando elas descem as cortinas de aço dos estabelecimentos e saem carregando sacolas de plástico com o logotipo da loja, talvez com o uniforme dentro, para voltar só na segunda-feira.

Conversas

Ao mesmo tempo em que se aprende a ignorar o movimento do povo andando pra lá e pra cá, é bom manter o ouvido atento para exercitar outra qualidade importante ao cronista visual: a de manter uma conversa enquanto a mão corre a caneta pelo papel.

Desta vez, duas jovens de cabelos curtos param ao meu lado, contam que estão admirando os desenhos e querem saber o que estamos fazendo (agradeço, explico e as convido à próxima sessão). Um cara vem andando pelo meio da rua e pergunta se estamos doando livros (infelizmente, não). Outra participante é indagada por um homem se tem alguém que possa dar aulas a seu filho (e é curioso como muita gente enxerga as artes como passatempo infantil).

Foto: Ivan Jerônimo sentado desenha com o caderno no colo
Um banquinho é essencial para se desenhar no Centro

A visão, quando se distrai do objeto de desenho e contempla ao redor, comprova o óbvio, que as políticas de assistência social dessa nossa cidade são insuficientes. Na praça ao lado das Americanas, moradores de rua se ajeitam para enfrentar os 12º C que virão assim que o sol se por; e um sujeito que também parece um sem teto começa a discursar a nossa frente numa fala embaralhada em que nem a gramática faz sentido.

Nas duas horas de observação atenta do edifício Palácio da Indústria, vou percebendo que o mato começa a se infiltrar pelas rachaduras, que o hall de entrada está sujo e que o espelho d’água em frente ao mosaico de Martinho de Haro há muito secou. Pelas grandes vidraças vejo salas amplas, todas brancas, algumas com divisórias. Mas não há mesas, cadeiras nem computadores.

Um dos primeiros prédios em arquitetura moderna de Florianópolis hoje está desocupado. E o Centro, depois que as lojas fecham, fica igual.


Sobre o desenho

O edifício Palácio da Indústria fica na esquina da rua Felipe Schmidt com a Sete de Setembro. O projeto é do escritório Moellmann & Rau, o mesmo do edifício Mussi, e foi inaugurado em 1963. Já abrigou a Fiesc e a Fatma (antiga Fundação do Meio Ambiente).

O registro foi feito em 20 de agosto de 2022 no 83º encontro do Urban Sketchers Florianópolis, em uma tarde de sábado fria e de céu azul. O analista de sistemas José da Silva Jr. fez um sobrevoo de drone enquanto desenhávamos.

Materiais

  • Caneta tinteiro Jinhao x750 com ponta dobrada (fude nib)
  • Tinta Koh-I-Noor Document Ink preta
  • Waterbrush Pentel
  • Aquarela Van Gogh em pastilhas
  • Sketchbook Hahnemühle A4 140 g/m²

Comentários

2 respostas para “O palácio desocupado e as ruas vazias”

  1. José Carlos da Rocha

    Um registro significativo de observação do espaço e da forma da Arte que está presente e ausente simultaneamente no cotidiano da cidade.

    1. Sim, é preciso flanar com os olhos e ouvidos atentos.

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