Desenho a lápis de um santuário xintoísta

Nove meses no Japão, três desenhos

Há algo de inquietante em morar em uma cidade estranha. Mais ainda em tentar retratá-la.

A ausência de vínculo com o lugar pode dar a impressão de que há muito a descobrir, mas a verdade é que acaba se ficando nas aparências. Você vai desenhar construções que não sabe para que servem, nem se são antigas ou mero pastiche.

Desenho a lápis de um prédio
Vista da janela do alojamento. No prédio havia uma providencial loja de conveniências onde comprei meu primeiro café da manhã em solo nipônico

As esquinas, ruas e construções não terão sido cenários de passeios, trajetos, amores, rancores ou amizades. Você não saberá que debaixo de um moderno prédio envidraçado estão soterradas as lembranças de pessoas que viveram seus dramas e risos no antigo casarão demolido. Uma avenida cheia de carros não trará a lembrança da rua de terra onde se ralou o joelho em um tombo de bicicleta.

Entre 2000 e 2001, morei em Kanazawa, cidade japonesa com quase a mesma população de Florianópolis. Abriga um dos jardins mais famosos do país, mas também tem seus templos, santuários, bairros antigos e museus. O paraíso do desenhista de rua, portanto.

Mesmo assim, depois de nove meses, voltei de lá com míseros três desenhos na mala.

Distrações

Falta de tempo não foi desculpa. Verdade que eu frequentava as aulas regulares de japonês e estagiava em uma empresa de design gráfico, mas havia os finais de semana e os feriados, que os japoneses os têm tanto quanto nós.

Praia tampouco foi o caso. Para chegar à cidade litorânea mais próxima, era uma hora de trem. Em meu único passeio até Uchinada, nome do lugar, me deparei com tudo vazio, apesar do dia quente. A ventania de areia deu a pista: a temporada de verão estava oficialmente encerrada.

Desenho a pastel oleoso mostrando uma ilhota cercada de água
Ilhota no jardim Kenroku-en. Mesmo um esboço em que mal se distinguem as coisas ganhou elogio de uma moça que passeava com seu filho

Quem sabe, não foi a nobre atividade de vagar pela rua. Afinal, tudo era novidade. Mesmo com o domínio da língua pior que o de uma criança japonesa no ensino fundamental, ia às livrarias folhear os livros de design e de arte (os únicos sobre os quais dava para saber do que se tratavam) e apreciar a infinidade de mangás de tudo que é estilo. A variedade de CDs de música brasileira nas lojas de discos me fazia xingar as gravadoras daqui por sonegar nossa história musical. Os museus exibiam coisas que nunca tinha visto antes: trabalhos tradicionais de gravura, caligrafia e cerâmica. Restaurantes e lojas de eletrônicos eram pratos cheios de novidades.

Ou então, pode ter sido a falta de hábito. Não no traço, mas no ato de sentar em um espaço público e se sentir à vontade para desenhar do jeito que bem entender. Revendo os dois esboços feito na rua – o do templo e do parque – percebo o traço apressado. Para o principiante tímido, desenhar em público significa tentar terminar rápido, com receio do julgamento dos passantes. Mesmo a 19 mil km de casa.


Sobre os desenhos

Templo

  • Lápis de grafite macio
  • Caderno Maruman Croquis
  • 35,6 × 26,8 cm
  • 4 de novembro de 2000

Vista da janela

  • Lapiseira grafite 0.9 mm
  • Caderno Kokuyo Campus
  • 35,7 × 25,2 cm
  • 14 de junho de 2000

Jardim Kenroku-en

  • Pastel oleoso Staedtler
  • Caderno Kokuyo Campus
  • 35,7 × 25,2 cm
  • 19 de novembro de 2000

Comentários

2 respostas para “Nove meses no Japão, três desenhos”

  1. Mary Lou Rebelo

    As cidades japonesas são muito ricas em uma mistura de prédios novos e antigos. Mas estão em constante mutação. O registro é mais importante ainda.
    Como se, adoro seu texto!

    1. Obrigado, Mary Lou! Isso me chamou a atenção também. Você está em uma avenida de prédios novos e entra num beco com casas de madeira escurecida com o tempo e parece que retrocedeu cinquenta anos.

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