Foto do caderno em 1º plano com barcos no canal da Barra

Quando o canal da Barra da Lagoa ficava seco

Um negócio que eu aprendi a fazer quando aparece alguém me espiando desenhar por cima dos ombros é puxar conversa. Dá para descobrir boas histórias.

Uma abordagem que eu sempre uso é perguntar “Você é daqui?”. Sendo ou não, a pessoa começa a falar sobre ela. Vai dizer que cresceu ali, quando não havia casas nem prédios. Ou que mora em um bairro do outro lado da cidade e acabou de largar o batente.

Claro, não faço isso com todo mundo. Tem uns que não valem a energia despendida pelo aparelho fonador ao dar um “oi”. Gente que prefere projetar seu ego ou mostrar que tem dinheiro.

Neste último sábado, encostado em um rancho de pescador no canal da Barra da Lagoa, a leste da ilha de Florianópolis, dou sorte. Um senhor bronzeado, com jaqueta de náilon e boné com a letra C maiúscula costurada, fica de pé ao meu lado. Parece comparar meu desenho com a paisagem dos barcos ancorados no canal.

Desenho de barcos ancorados, com o canal da Barra e o morro ao fundo
Dependendo para onde se olha, até dá para ignorar a ocupação desordenada do bairro

Lanço a pergunta e ele confirma que nasceu e se criou ali. O diálogo não flui muito bem – o sotaque e talvez um pouco da velhice o faz difícil de entender. Por outro lado, minha dicção não é das melhores e fica pior depois que coloco a máscara contra Covid.

Ele conta que tem 71 anos, mas parece mais velho. Relata-me que o canal da Barra era mais raso e ficava seco parte do ano, permitindo aos moradores esticarem as redes de pesca. Lembro que quando meus pais alugaram uma casa do outro lado do canal em um verão do início dos anos 80, a água já tinha a mesma profundidade de hoje.

— Que época foi isso? Década de 60, 70? — pergunto.

— É, mais ou menos por aí. Eu tinha uns dez anos.

Subtraio 60 de 2022 e a conta fecha. Remexo a memória atrás de alguma lembrança do bairro de antes dos restaurantes, pousadas e lojas de quinquilharias, mas só me vem uma cena do filme A Fêmea do Mar. Nessa produção de Ody Fraga com Aldine Müller, aparece exatamente a esquina de quando se chega na Barra da Lagoa, com estrada de terra, uma venda e poucas construções.

Minhas recordações mais antigas são um pouco mais recentes, de antes do asfalto e de, criança, ter atravessado a ponte pênsil faltando ripas, balançando a cada passo, mas a conformação da localidade já era mais ou menos a de agora.

— Foram abrindo tudo pra deixar o canal mais fundo – explica ele. — Sabe o restaurante aqui do lado? Antes era um bar. Teve um ano que o mar veio até aqui e levou tudo embora – conta, apontando para a praia da Barra da Lagoa a 200 metros de onde estávamos.

Levo alguns segundos estimando o prejuízo que deve ter sido e ele aproveita para se despedir. Diz que vai me deixar terminar o desenho e passa entre os caiaques equipados com radar e GPS dos pescadores de fim de semana.

PS: enquanto eu desenhava, o analista de sistemas José da Silva Jr. gravou este passeio de drone pela Barra da Lagoa.


  • Pastel oleoso
  • Papel kraft 110 g/m²
  • 42 × 32 cm

Comentários

13 respostas para “Quando o canal da Barra da Lagoa ficava seco”

  1. Linda esta narrativa, Ivan Jerônimo. E tua técnica de abordagem não tem erro: o peixe cai na rede!👏👏😁

    1. Bem observado! É uma boa isca de histórias.
      (E obrigado pelo comentário!)

  2. Mara

    Queria ter a paciência e confiança de ouvir estranhos. Porque sim, a conversa pode ser boa, bonita e fazer a gente viajar nos pensamentos. Mas meu jeito meio carrancudo e desconfiado de paulistana afasta os curiosos que chegam. Mas vivendo e aprendendo… parabéns pelo desenho e pelo texto, Ivan.

    1. Obrigado, Mara. Também nasci em São Paulo, embora nunca tenha morado lá (a família se mudou cedo pra cá). Sabes que o ilhéu também tem fama de ser meio desconfiado com estranhos? Há uns vinte anos quando as peruas clandestinas se espalharam pelas cidades brasileiras (São Paulo que o diga), tentaram fazer o mesmo o esquema aqui, mas dava até dó dos perueiros: eles paravam nos pontos de ônibus cheios e anunciavam a rota, mas as pessoas fingiam que não era com elas e ignoravam completamente a oferta.

  3. DulcePenna

    Adoro tuas histórias Ivan. E Obrigada por compartilhar. Também sou “escutadora de histórias” como você. A gente aprende tanto!!!!

    1. Sim. E se a pessoa for legal dá de descobrir bastante coisa sobre o lugar. Quando fomos ao Centro Histórico de S. José conheci, por coincidência, o filho do Gerlach, que me contou várias coisas sobre o bairro.

  4. Mary Lou Rebelo

    Na década de 1960 vínhamos passar as férias de verão aqui em Floripa. A família é daqui, mas a gente morava no Rio. Lembro de ter vindo algumas vezes à praia da Barra da Lagoa. Não havia estrada e a gente vinha de barco saindo da Lagoa e passando por baixo de uma ponte. A praia era maravilhosa! Passávamos o dia e o barqueiro nos levava de volta no final do dia! Um paraíso.

  5. Helena Maria Werner

    Mais uma de suas lindas histórias, Ivan. Gosto de lê-las porque catarinense que sou, mas não nascida manezinha, sinto sempre que é uma sensível forma de saber mais sobre esta incrível ilha que generosamente me acolheu.

    1. Obrigado, Helena. Tenho tido boas oportunidades de puxar conversas nas vezes em que saio para desenhar. Uma vez o parente do dono de uma das poucas casas açorianas do Córrego Grande parou para conversar e me deixou tranquilo de que não havia vontade de vender a casa (embora hoje estejam construindo um prédio no terreno ao lado, coisas da expansão imobiliária desenfreada).

  6. Tunoqui

    Lindíssima,a sua narrativa e o seu desenho sempre espetacular, em cada encontro temos a grande oportunidade de compartilhar o espaço,a vida e as memórias do lugar, super lindo seu belo relato, gratidão.

    1. Valeu, Tunoqui. Desenhar na rua acho que é estar aberto a esses adoráveis imprevistos que tornam as saídas ainda mais proveitosas. Abraços

  7. Siení

    Desenho lindo, como sempre, e uma delícia de texto, dá vontade de ler mais. Adoro puxar conversa, poucas vezes não rola um retorno. Acho que as pessoas gostam de ser ouvidas, apreciam o interesse – verdadeiro – no que têm a dizer. Por isto, quando morava na Argentina, ganhei o apelido de “vieja de pueblo”, “velha de aldeia”. Parece que elas também curtem jogar conversa fora. Sabem o que é bom!

    1. Boa história, Siení. Para mim é um pouco confuso conversar enquanto se desenha, mas jogar conversa fora meio como quem não quer nada é o melhor jeito de capturar a vida local.

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