Desenho a traço e aquarela do antigo prédio do Ipuf

Relato sobre um desenho invendável

Os carros estacionados dos dois lados da rua somem e são substituídos sem que eu perceba. Uma minivan branca para quase em frente de onde estou sentado desenhando. Não chega a atrapalhar a vista, mas os ocupantes iriam incomodar. Só um deles, para ser justo.

O prédio que escolhi registrar foi construído em 1910 para ser um asilo para orfãs e hoje é uma escola particular com espaço gourmet e laboratório maker. Entre esses dois períodos, abrigou o Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf) por quase quatro décadas.

Na tarde sem nuvens em um sábado de inverno, dava para escutar a movimentação dos trabalhadores que reformavam o lugar para deixá-lo pronto para uma mostra de decoração no mês seguinte.

Daquele carro que acomodaria uma família de turistas em veraneio sai um sujeito mais ou menos da minha idade, com jeito de gerente de concessionária ou pastor. Tipos acostumados a levar os outros naquela mistura de conversa mole e leve ameaça – de perder a garantia do veículo ou cair nas garras de Satanás, dependendo do ramo. Está acompanhado do filho, que parece estar justamente naquela faixa em que eu tenho dificuldade de estimar a idade, que vai do nascimento aos 12 anos.

Diferente das outras ocasiões, em que eu conseguia fazer até dois desenhos, neste foi só um. Comecei pela bolinha da coluna do portão frontal e fui seguindo, com a pena de bambu friccionando o papel rugoso.

O gerente de concessionária (ou pastor) sai do carro, me vê desenhando e se detém junto com o moleque. Aprendi faz tempo a ser simpático nessas situações. E também a conversar e desenhar ao mesmo tempo. Habilidade valiosa, porque tem me rendido informações sobre as construções ou, pelo menos, boas conversas.

Mas não é o caso aqui. Sem dar boa tarde nem se apresentar, o cara logo pergunta:

— Quanto é?

— Opa, boa tarde! — tento estabelecer uma comunicação minimamente civilizada, ao menos para eu não me sentir um macaco num zoológico. — Não estou vendendo. Eu desenho por hobby, a gente tem um grupo que sai para desenhar etc e tal.

A verdade é que não fui com a cara dele e não estou a fim de arrancar uma folha do caderno. Ele fica olhando mais um pouco e volta a perguntar:

— Faz um preço, então.

— Nem está pronto ainda, eu gosto de dar os últimos retoques em casa… — Outra mentira. Sempre termino os desenhos no local. Nem a assinatura eu acrescento.

O cara e o moleque avaliam a obra por alguns segundos e vão embora andando pela calçada. Podiam ter dado tchau. Me pergunto o que aconteceria se eu tivesse vendido o desenho. Estaria exposto no escritório da concessionária junto com o certificado da montadora ou pendurado no quarto do guri?

Se eu soubesse separar as emoções dos negócios, teria voltado da sessão de desenho com dinheiro no bolso. Mas melhor não: vai que o cara resolve me pagar com cheque. Prefiro não confiar em certos tipos.


  • Pena de bambu
  • Pincel japonês
  • Nanquim tipo sumi
  • Aquarela em pastilha
  • Sketchbook Hahnemühle A3

Comentários

Uma resposta para “Relato sobre um desenho invendável”

  1. […] Claro, não faço isso com todo mundo. Tem uns que não valem a energia despendida pelo aparelho fonador ao dar um “oi”. Gente que prefere projetar seu ego ou mostrar que tem dinheiro. […]

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