Foto do livro. Na capa, em papel cinza cru, se lê “New York” (em dourado) e “Lucinda Rogers” (em preto)

Livro exibe três décadas de olhar estrangeiro sobre Nova York (e seus trabalhadores)

Antes de iniciar esta resenha do livro New York: Lucinda Rogers Drawings 1988–2018, vale contar o longo caminho que ele percorreu até chegar em casa.

O exemplar que comprei na campanha de financiamento coletivo em 2019 se perdeu em algum lugar entre Londres e Florianópolis. Daí veio a desvalorização do real, que tornou o frete mais caro que o livro, e, em seguida, a pandemia, que restringiu pessoas e pacotes de cruzarem fronteiras.

Foi só em janeiro deste ano que a autora pôde me remeter outro exemplar. Se o primeiro foi parar nas mão de outra pessoa, espero que ela saiba apreciar este belo livro. Da minha parte, a espera valeu a pena.

A cidade real

A obra traz desenhos de observação de Nova York entre 1988 e 2018, períodos em que a ilustradora inglesa morou ou esteve visitando a cidade. Há obras feitas em mais de uma sessão, em alguns casos, com até um ano de intervalo.

Livro aberto mostrando desenho do interior de uma lanchonete
Cenas comuns do cotidiano dos moradores estão por todo o livro. Interior do Eisenberger’s Sandwich, atualmente fechado

Rogers consegue transmitir um pouco da alma da metrópole, à maneira dos filmes policiais de Hollywood da década de 1970, como Serpico, Operação França e Taxi Driver – embora o período em que ela capturou as ruas seja mais recente.

Assim como nessas produções, você vai encontrar poucas vistas de cartões postais: a ponte do Brooklin, um par de desenhos na Times Square, o Flatiron building e não muito mais que isso. A autora prefere descer às ruas, por assim dizer. Ao folhear as páginas, nos deparamos com ruas cheias de gente, prédios antigos, interiores de lanchonetes, bancas de jornais, ambulantes e caminhões de carga.

Gentrificação

Algo que eu costumo fazer com livros de urban sketching é procurar os lugares que o artista desenhou no Street View para compará-los com as ruas e prédios reais. Aqui, o exercício só serve para perceber as mudanças da cidade – ruas e até bairros inteiros não são mais os mesmos.

Desde o período inicial dos desenhos, no final da década de 1990, Manhattan passou por grandes projetos de renovação, sem falar do processo de gentrificação. A desenhista eternizou o Meatpacking District, o SoHo e outros bairros que depois perderiam sua identidade, invadidos por empreendimentos de luxo e lojas de marcas idênticas no mundo todo.

Mesmo registrando uma das cidades mais filmadas e fotografadas no mundo, Lucinda Rogers documentou um estágio de urbanização sobre o qual é difícil de achar registros na internet – parte de sua atividade é anterior às câmeras digitais e redes sociais. São locais afastados dos pontos turísticos, que ainda carregavam a fama de serem ermos ou mal frequentados.

Em grande escala

A artista é do tipo que explora espaços negativos, omitindo os detalhes de grandes áreas, como fachadas inteiras. Por outro lado, não simplifica o que desenha. Em traços finos, ela reproduz letreiros chineses perfeitamente reconhecíveis, legumes em cima de uma banca de feira, os luminosos na Time Square e algo que desafia qualquer desenhista: bicicletas. Com as correntes e cadeados.

O tamanho de seus originais facilita o detalhismo. No vídeo da campanha de crowdfunding e nas fotos que estão no livro, a autora está sentada na rua com folhas de até 70 cm (quatro vezes o papel A4 de impressora). Ela faz os traços grossos com pincel e alterna com uma pena fina para os detalhes. O livro, com 30 cm de altura, reproduz bem as minúcias.

Detalhe de desenho
Apesar de simplificar formas (como os carros), o olhar da autora registra detalhes da vida da cidade

Em vários desenhos, dá para ver um esboço prévio a lápis de cor ou pastel. São linhas soltas, que imagino que sirvam para guiar a perspectiva e a composição, embora ela frequentemente mude a posição dos elementos na arte final.

Enquanto a maioria das obras é identificada com o nome da rua ou do estabelecimento, outras têm títulos mais enigmáticos. Uma diversão adicional é procurar de onde saíram, geralmente tirados de um letreiro pequeno em um canto da folha.

A hora do dia

A escolha por papéis coloridos aqui é plenamente justificada. Além de permitirem o uso de guaches claros, transmitem a qualidade da luz de uma cena. Por exemplo, azul escuro para uma cena noturna ou marrom avermelhado para um paredão de prédios que reduzem o céu a um retângulo azul claro. Seu domínio de cor permite adivinhar a hora do dia e até a época do ano.

Livro aberto mistrando desenho de prédios com céu azul ao fundo
Combinação de papéis coloridos e tinta guache permitem sugerir a luz do momento em que o desenho foi feito

Aos curiosos em saber as técnicas, uma foto no capítulo quatro mostra os apetrechos que a artista leva em suas saídas: pincéis, lápis de cor, pincéis japoneses, penas, frascos de nanquim e tubos de tinta guache. Tudo enrolado numa folha do New York Times. E, nas páginas finais, há uma lista das obras, com data, dimensões e materiais.

Trabalhadores

É comum a ilustradora sobrepor as pessoas aos cenários, como se fossem transparentes. Quem desenha assim sabe que mesmo uma pessoa parada uma hora se movimenta ou resolve ir embora. Às vezes, ela conseguiu que a pessoa retratada ficasse imóvel. Em outros casos, foram elas que pediram para serem desenhadas, coisa que, na minha experiência, é rara de acontecer.

Desenho a traço mostrando bombeiros na capela St. Paul em NY
Interior da capela St. Paul, que serviu de base para os bombeiros responsáveis pelos resgates após o 9/11

Um aspecto diferencia Rogers de outros artistas que retratam cidades: a presença de trabalhadores. Os homens e mulheres de nanquim que estão retratados nas páginas não estão lá para compor o cenário. São vendedores ambulantes, policiais, funcionários do metrô, balconistas, jornaleiros e tantos outros que fazem a cidade ser o que é. Ela conversa com as pessoas e consegue extrair pequenas histórias que acompanham algumas legendas.

E um dos últimos capítulos é dedicado a um dos trabalhos mais duros da história recente da cidade: o dos bombeiros que trabalharam no resgate das vítimas do atentado às torres gêmeas.


New York: Lucinda Rogers Drawings 1988–2018
West Street Press, 2019
156 páginas
24,7 × 31 cm
Capa dura e miolo em papel offset
ISBN: 9781916274204

Este texto é parte de uma série de resenhas de livros sobre urban sketching. Veja todos os posts.

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