Para desenhar, é preciso saber ouvir. Não estou falando de ter a humildade de aceitar conselhos, mas sim de prestar atenção às conversas ao redor enquanto o lápis percorre o papel. Abre a chance de pegar o contexto do lugar e, se você estiver retratando as pessoas, ajuda a capturar a personalidade delas.
Lá estou eu sentado na praça em frente ao Museu Anita Garibaldi, no Centro Histórico de Laguna (SC). O banco de madeira virado de lado pro prédio me obriga a ficar com o pescoço torto e a cabeça virada pra esquerda.
O museu funciona na antiga Casa de Câmara e Cadeia onde, três anos antes de nossa visita, ladrões subiram a escada externa e levaram embora um sino que ninguém sabe quando foi parar lá. Um painel informa que só existe outro prédio desse tipo do período colonial brasileiro em Lapa, no Paraná.
Do nada, começo a ouvir gente berrando em outro banco alguns metros atrás de mim. É um homem e uma mulher que conversam em voz alta. Com essa gritaria, não é preciso muita atenção para a orelha direita ficar na escuta.
O sujeito comenta que encontrou um amigo de tempos atrás em uma cidade vizinha:
— Olha, demorou pra eu reconhecer. O cara tá inchado, ficou careca… Parecia um mendigo, mal vestido, com a camisa toda velha. Saí de lá espantado.
Na hora, viro a cabeça e analiso o dublê de esteticista e crítico de moda e quase falo “E tu é o Alain Delon, por acaso?”, tamanha sua semelhança com a descrição que ele acabou de fazer do companheiro de longa data.
Já é o terceiro desenho da manhã, por isso vou com o traço mais relaxado. Começo com as folhas da árvore para funcionar de moldura para a composição e continuo com a caneta ponta fina.
A mulher que conversava com o personal stylist, por sua vez, havia cruzado com um conhecido que vendia peixe e camarão:
— Ele disse que ia me fazer o quilo por dez reais, mas nem cheguei perto. Sabe quando o cheiro já diz que ele descongelou e congelou de novo? Deve ter ficado debaixo do sol e agora ele tá tentando se livrar…
Chega a hora de aplicar as sombras no caderno com uma caneta pincel (brushpen). Aperto, chacoalho e sai um traço seco.
Aparece uma terceira pessoa na conversa. Falam do carro precisando de uma geral e tentam decidir o restaurante onde vão almoçar. Fico atento para pegar uma indicação. Os moradores sabem onde comer bem e evitam armadilhas de turista. Acaba que não consigo ouvir, mas é melhor assim. Sentar perto de uma mesa com essa destilaria de veneno iria ser indigesto.
- Caneta Mitsubishi Uni-Pin
- Pentel Fude pen
- Caderno Hahnemühle A4 140 g/m²
Este é o quarto de uma série de cinco desenhos de uma viagem à cidade de Laguna, em Santa Catarina, em junho de 2019. Veja os outros:
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