No final de 1976, um casal de arquitetos com um bebê de colo veio de São Paulo em um Fusca vermelho para se mudar definitivamente a Florianópolis. Ela, minha mãe, tinha 28 anos. Meu pai estava prestes a fazer 31.
Só nos anos seguintes iríamos pegar ônibus na antiga rodoviária, entre as avenidas Mauro Ramos, Hercílio Luz e a travessa Doutor Zulmar de Lins Neves. Eu poderia descrever a minha expectativa da viagem para reencontrar os parentes no Sudeste, relembrar o cheiro de óleo diesel dos veículos e puxar da memória os funcionários nos guichês preenchendo a passagem à mão com papel carbono, mas seria tudo mentira. Eu tinha menos de três anos e não lembro de nada.
A inauguração do novo terminal Rita Maria no Aterro da Baía Sul, em 1981, transformou a rodoviária velha em um centro comercial, abrindo o primeiro capítulo do que seria a novela da ocupação do imóvel, que se estende até hoje. Mas tem fim marcado. O Ministério Público de Santa Catarina alega descuprimento de normas de segurança, sublocação das lojas e degradação estrutural e sugere sua interdição e demolição.
A prefeitura já comunicou que vai acatar, mas quem quiser saber o que pensam os comerciantes, tem de ir lá perguntar a eles. E do que será feito do terreno, em lugar valorizado, nada se diz.
A construção de planta triangular, de 1959, já estava na lista para ser desenhada quando saiu a notícia da provável demolição semanas atrás. Foi a deixa para o Urban Sketchers Florianópolis marcar um encontro. Ao menos ficarão os registros em papel.
Bonito o prédio não é. Parece um galpão ou fábrica. E decadente. Mas o comércio ali é autêntico e popular.
Depois que só sobrarem escombros, os trabalhadores das redondezas e os estudantes do Instituto Federal de Santa Catarina vão sentir falta da experiência gastronômica (e dos preços) da Cia. dos Sucos, do restaurante Frigideira da Ilha e do Garapastel.
Vão virar pó a lotérica Desterro, a auto mecânica Roni, o Martelinho de Ouro Central, a Carlos Machado Decorações, a Haval Embalagens e o apertado Bazar Datere, lotado até o teto de panelas, vassouras, cadernos, lápis, guarda-chuvas e o que mais o freguês conseguir achar nas estantes apertadas.
Quando peguei o laptop velho da minha mãe para doá-lo, achei uma nota fiscal de um serviço de manutenção feito ali num lugar chamado Khalil, que vai ter de prestar seus servições de reparo de computadores, xerox e disk água em outro canto.
Quem gosta de se arrumar vai ter de superar a ausência da Patrine Agostini Studio Hair, barbearia Vinte Cinco, da Iria Malise Boutique & Atelier de Costura e da sapataria Claudia.
Poucos além de mim vão sentir falta da pintura original de losangos acima da marquise, preservada em um trecho da fachada da Mauro Ramos.
Das duas horas que passei sentado na tarde de sábado de fim de inverno, vai ser difícil não lembrar do Intokaveys Bar, com suas cadeiras laranjas da Schincariol e engradados de Skol no chão. Da moça bêbada de vestido tubinho cuja conversa era impossível não ouvir. Do senhor magro com camiseta do Vasco que apareceu numa das janelinhas do segundo andar e que deve ter subido ali pelo monta-carga. E do velho louco que parava em frente de alguém, soltava palavras desconexas e seguia para o próximo cidadão.
Seu vizinho de porta, a Galeria Lama não poderia ser mais diferente. Tem projeto assinado, serve chope artesanal, expõe trabalhos de artistas nas paredes e é frequentado pela juventude moderna e branca. No Intokaveys, a maioria era negra.
Mas na semana que vem, não importa qual o faturamento, o alvará ou a clientela, todos estarão fechados.
Sobre o desenho
Desenho feito no 96º encontro do Urban Sketchers Florianópolis em 16 de setembro de 2023.
Quando postei esse desenho no Facebook, muitas pessoas comentaram com suas memórias da antiga rodoviária. Entre os mais de cem relatos, contam que na década de 1940 o terreno era ocupado por uma construção em madeira, com uma varanda para a avenida Hercílio Luz, onde funcionava a antiga diretoria ou guarda de trânsito. Servia também de campo de futebol para a molecada. O prédio atual foi construído para ser uma feira de alimentos, o Serviço de Abastecimento da Previdência Social (Saps), e só depois convertido em rodoviária.
É a segunda construção ameaçada de demolição que o movimento registra. A outra foi um par de prédios na rua Martinho Calado.
- Tira linhas Dreaming Dogs
- Pincel japonês tipo fude
- Nanquim e água
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