Desenho colorido de dois prédios geminados com carros estacionados na frente

Eu desenho, eles derrubam

Véspera das eleições de outubro de 2018. Eu estou sentado em frente de dois pequenos prédios residenciais na rua Martinho Calado, no centro de Florianópolis, na altura do número 100. Apoio um caderno no colo e seguro o pote de nanquim com a mão esquerda enquanto desenho as construções usando uma pena de bambu.

Além da eleição amanhã, o sol está forte e o noticiário ainda avisa do risco de ciclone. Uma dor na lombar que já dura meses me obriga a usar um caderno menor, mais leve.

A escolha do lugar é do Urban Sketchers Florianópolis. Sabíamos por conversas no Instagram Prédios de Florianópolis que as duas edificações iriam abaixo em pouco tempo. É a vontade dos herdeiros da proprietária, escrevem.

Foto dos dois prédios. O da esquerda é verde claro, enquanto o da direita é creme com detalhes em cerâmica vermelha. Ambos têm quatro pavimentos
Elementos arquitetônicos são resquícios de outra cidade

De estilo eclético contemporâneo, os prédios têm elementos de inspiração art decó. A escada circular da entrada, o friso vertical envidraçado e os cobogós são elementos que desapareceram da arquitetura local de hoje.

Lembro de algo que me dei conta quando desenhei na Bahia: quando está quente, o nanquim seca muito rápido na ponta da pena. Ou você a encharca de tinta, ou sai um traço seco. Não há meio termo.

Consegui desenhar outro ângulo no fim do encontro. Caneta tipo “fude pen” sobre papel A4

Um rapaz aparece na janela do terceiro andar do prédio da direita e me pergunta se somos do curso de Arquitetura. Explico que participamos de um movimento de desenho de rua e conversamos sobre o destino dos dois edifícios – ele acha que serão demolidos, mas lamenta que os proprietários não lhe disseram muita coisa.

Depois que quase todos os participantes foram embora, o morador nos convida para conhecer seu apartamento. Ao subir as escadas, cruzamos com um casal, talvez de origem síria ou libanesa porque a mulher cobre a cabeça com um lenço. A habitação é espaçosa e com muitos quartos, como costumava ser antigamente. Os móveis antigos espalhados pela sala são do seu trabalho como restaurador.

No dia seguinte, parte dos eleitores iria às urnas votar em um sujeito que passou trinta anos como deputado aperfeiçoando não só um esquema para se apropriar do salário de funcionários fantasmas mas também um discurso para enganar otários – e se deu bem em ambos.

Hoje, o terreno virou um estacionamento, aquele deprimente estado intermediário entre a demolição de um prédio e a construção de outro.


  • Sketchbook Hahnemühle A4 140 g/m²
  • Pena de bambu, nanquim tipo sumi e aquarela Talens Van Gogh (primeiro desenho)
  • Caneta Kuretake Bimoji fude pen (segundo desenho)

Comentários

2 respostas para “Eu desenho, eles derrubam”

  1. […] Desenho feito no 96º encontro do Urban Sketchers Florianópolis em 16 de setembro de 2023. É a segunda construção ameaçada de demolição que o movimento registra. A outra foi um par de prédios na rua Martinho Calado. […]