Desenho a traço do balcão do café com as mesas em primeiro plano e alguns clientes

Polêmico, inédito e manuscrito

Na fila do café, uma dúzia de mulheres do congresso de neurologia escolhem o que vão pedir na vitrine cheia de tortas e bolos. No meio das mesas, uma senhora em pé escuta áudio com o celular deitado, como se segurasse uma bandejinha de shoyu encostada no ouvido. Mas o senhor que vem andando já escolheu seu alvo: sou eu, sentado, tomando café sozinho às oito da manhã.

Ele para em pé ao meu lado e aponta para a loja da Editora da UFSC, que está fechada.

— Sabe se é aqui que eles fazem livro de graça?

Achei que ele fosse me perguntar o horário de abertura, não um troço complicado desses.

— Olha: tem que mandar os originais e daí os editores têm de aprovar. Mas aqui é só a loja. A editora mesmo fica em outro prédio — respondo.

Ele segura uma sacolinha de plástico amarelo na mão. As sobrancelhas são grossas e das narinas saem tufos espessos de pelos pretos e cinzas. Há no sotaque algo desta parte do litoral, mas não é bem a mesma fala de Florianópolis.

— Eles podem fazer o livro? Eu queria imprimir duzentas mil cópias, mas começar com duas mil e ir aumentando.

Se eu não arregalei os olhos nessa hora, já me considero apto para espião ou mordomo. Os títulos mais vendidos no Brasil, quando muito, passam de cem mil exemplares.

— Se for só imprimir, dá para levar para uma gráfica — comento.

— Mas daí tem de pagar, né?

— É. A gráfica vai lhe entregar o livro e daí você se vira para distribuir e colocar nas lojas. — explico, batendo as mãos como se fossem uma porta de saloon, dando a entender que toda a cadeia de distribuição e varejo não vai mexer um dedo nesse caso.

— E dá para fazer menos, tipo um ou dois? É que eu não queria pagar.

Por essa súbita redução da tiragem, começo a entender que o sujeito não conhece muito do caminho – ou descaminhos – que um livro percorre do computador do autor até a livraria.

— Será que eu posso entregar o livro escrito a mão? Não entendo nada de computador, só tenho esse celular velho.

Tento explicar o processo. Que, se o livro for aprovado pelos editores, ele que vai receber um dinheiro. Que é praxe o autor enviar o original impresso, mas tem gente nas editoras para digitar. Que é preciso tomar cuidado com gráficas que se dizem editoras e atraem o autor iniciante prometendo sua obra em destaque nas livrarias. Nem entro na seara do e-book porque minha mulher reclama que eu, em vez de explicar o que a pessoa precisa saber, vou incluindo informações e alongo uma conversa que poderia ser curta.

Ele parece ficar desanimado. Tenho o hábito ruim de estragar o entusiasmo dos outros citando problemas que talvez a pessoa nem enfrente.

— Agora, para publicar essas porcarias, tem dinheiro, né? Esses livros do Neymar, de jogador de futebol — protesta.

Concordo. E eu até poderia citar vários autores que não valem o papel da impressão ou ainda discorrer sobre a formação do leitor brasileiro. Mas solto um comentário conformado:

— É. Dá dinheiro, né?

— Se bem que não sei se iam querer publicar meu livro, mesmo. É meio polêmico.

Pelo jeito, fiz bem em ter largado o jornalismo. Qualquer colega teria perguntado que polêmica era essa. Delata falcatruas de alguém? Descreve práticas sexuais não convencionais? Defende a abolição do Estado? Revela que somos controlados por extraterrestres?

Que meu xará, São Jerônimo, padroeiro dos tradutores, interceda em seu favor e faça-o encontrar alguém que digite seu manuscrito em um processador de texto. Porque esse outro Jerônimo aqui não foi de muita ajuda.


Sobre o desenho

Este esboço faz parte de uma série feita de manhã cedo, no lugar onde costumo tomar um café entre a natação e o trabalho.

As mesas estão sempre vazias. Raramente há mais de uma dúzia de pessoas.

  • Caneta ponta fina Uni Pin
  • Caderno Schildkröten 16 x 8 cm
  • 22 de maio de 2019

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