É fácil apontar culpados pelo ano inteiro que se passou entre o desenho de hoje e o anterior. Foi o trabalho que absorveu minhas horas, as férias que não deixaram tempo para nada, o verão da insolação e dos mosquitos, o inverno frio que enrijeceu os dedos, e até a caneta, que anda com a ponta seca sem que eu lembre de comprar uma nova.
Daqui a pouco, o primeiro desenho da série, da antiga padaria Maria Farinha, completa cinco anos e ainda não terminei a lista. Houvesse vontade de verdade, era só ter saído de casa com papel, caneta, aquarela e pincel. Uma sessão não toma mais que três horas de um sábado ou domingo. O texto, um pouco mais, coisa de quatro horas (as pessoas geralmente acham que o desenho demora e o texto sai sem esforço, quem me dera).
Mas aqui, a atividade furtiva e eficiente das retroescavadeiras é um alerta de que daqui a pouco não me sobra mais nada do bairro antigo. Voltando do trabalho a pé, em uma segunda-feira, percebo que uma das duas casas que dividiam um terreno na esquina da rua Sebastião Laurentino da Silva foi demolida. Justamente a mais antiga – e a mais bonita. É do tempo da granja Santa Terezinha, que tirava o leite das vaquinhas e o transportava a uma usina no Centro, como me conta um morador.
Na hora, bate o arrependimento de não tê-la registrado. Era óbvio que um terreno daquele tamanho, com dois imóveis bem espaçados, não resistiria ao assédio das construtoras. E não foi surpresa: semanas antes dois técnicos faziam algum tipo de sondagem de solo. Felizmente, a casa verde ao lado continua em pé. Separo os materiais em um sábado e saio para desenhá-la.
Sentado debaixo da sombra de uma árvore de jambolão, torcendo para não cair um fruto na roupa, começo a observar de verdade a casa pela qual sempre passei no trajeto entre meu prédio e o trabalho. O gramado da frente está bem cuidado. Três balanços pendurados nas árvores há tempos parecem não receber os fundilhos sujos de terra de uma criança. Uma trave de bambu faz o papel de portal, mas devia ser uma trave de futebol ou suporte de plantas.
Assim que começo a desenhar, me dou conta da calma que é ficar observando os resquícios de um bairro que está se transformando. Dá pena pensar que um dia isso tudo vai virar mais um prédio modernoso, com comércio padronizado, impessoal e caro, e moradores que ostentam seus cachorros de raça levando-os para sujar a calçada.
Na soleira da porta, alguém deixou um par de sapatos, que é costume das pessoas daqui entrarem descalças em casa, mesmo no inverno. Um pouco mais para os fundos, tem o que toda casa da minha infância tinha: um canto onde se encostavam móveis velhos, cadeiras de piscina rachadas, escadas dobráveis e tudo o que não cabia na lavanderia ou na garagem.
O jardim, por contraste, está impecável. O gramado é bem aparado e também estão bem cuidadas as plantas na entrada e nas floreiras. Uma árvore sustenta uma casinha de passarinho, dessas com telhadinho de duas águas e janelinha redonda. O casal de senhores que vive ali sai de casa, me olha, e depois vai cuidar dos seus afazeres.
Desenho terminado, vou para o café ali perto. Carol, minha mulher, me lembra:
— Você esqueceu de tirar a foto!
Volto correndo com o celular e a prancheta enquanto ainda tem luz do sol. Um senhor na calçada em frente à casa comenta que havia me visto horas antes. Elogia o desenho, diz que é conhecido dos donos da casa e quer que eles vejam o resultado.
Ele bate palma, mas não aparece ninguém. Consegue enfim chamar a filha, que aparece no portão. Ela parece gostar do desenho, diz que vai mostrá-lo à mãe e me convida para entrar no terreno.
Passo pelo caminho no meio do gramado, rente à casa, e paro na pequena porta da esquerda – outro costume daqui, de usar a entrada secundária e deixar a principal para ocasiões especiais.
Me apresento ao casal, explico o que estou fazendo e mostro-lhes o retrato da casa em que moram. Conversamos um pouco. A senhora se desculpa pela demora em atender e confidencia que tinha feito que não ouviu de propósito.
E termino aqui. Longe de mim querer espalhar fofoca no bairro.
Sobre o desenho
Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.
O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.
- Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
- Waterbrush Pentel
- Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
- Papel Canson Watercolor 300 g/m²
- 22,9 × 30,5 cm
Deixe um comentário