Desenho da ponte Hercílio Luz a partir do início da passarela de pedestres, mostrando as duas torres, os postes e, ao fundo, os prédios do continente em silhueta

A ponte sempre presente

Ser uma rara ponte pênsil no Brasil, ou a maior delas, deve ter sido a causa da Hercílio Luz ter virado o cartão postal de Florianópolis. Inaugurada quando a cidade era uma província de 40 mil habitantes, em 1926, foi ao mesmo tempo símbolo de modernidade e início da expulsão dos moradores pobres que viviam próximos à cabeceira para as encostas dos morros.

A construção continua aparecendo em inúmeros logotipos, serve como fundo de selfies de turistas e moradores, e tem seus ângulos explorados até pelos fotógrafos mais avessos aos clichês.

Lá está ela, nos trágicos minutos finais do primeiro filme catarinense de ficção, O Preço da Ilusão, de 1957, época em que as torres e cabos sustentavam só uma pista de madeira. Esse trecho é o único sobrevivente do negativo do longa-metragem de 75 min.

Foto da ponte Hercílio Luz na década de 1980, ainda pintada de preto, com a ponte Colombo Sales ao fundo. Em primeiro plano, a avenida Beira-Mar sem calçada nem ciclovia e um barco ancorado chamado Turimar V
Ponte Hercílio Luz com barco Turimar V, 1980. Acervo da família

Foi a ponte que deve ter motivado minha mãe ou meu pai a estacionarem o carro em 1980 para tirar uma foto. A estrutura era pintada de preto e a pista já havia sido substituída por asfalto. Em primeiro plano, um extinto serviço de barco de passageiros e a avenida Beira-Mar sem calçada nem ciclovia. Ao fundo, um solitário Fiat 147 branco transita pela via.

Eu tinha seis anos quando a ponte foi interditada em 1982, mas guardo memórias de tê-la atravessado de carro. Lembro de um trecho de menos de cem metros em que as treliças metálicas formavam um padrão mais fechado, quase um túnel.

Com a ponte fechada para veículos, a travessia ilha-continente virou passeio de fim de semana, mais ou menos como é hoje nos domingos. Percorri os 800 metros de uma ponta a outra, de bicicleta, com outros moleques do colégio quando eu tinha uns doze anos. A única proteção da lateral da pista era um guard-rail, que dava espaço suficiente para uma criança desgarrada despencar lá de cima.

Desenhando a ponte agora, depois de uma reforma que durou quase vinte anos, olho as ruínas do antigo estaleiro Arataca, embaixo da estrutura de ferro. Foi um bar-restaurante com o mesmo nome na década de 1980. Sei lá por que, não o frequentei, mas fui algumas vezes à sua encarnação seguinte, um curioso estabelecimento chamado Espaço Fios & Formas, que unia salão de beleza no térreo e bar no segundo piso, às vezes com as duas coisas funcionando simultaneamente no começo da noite.

Foto de show do Mestre Ambrósio mostrando três integrantes: Siba em primeiro plano e Helder Vasconcelos e Eder "o" Rocha ao fundo.
Show do Mestre Ambrósio no extinto Espaço Fios & Formas em março de 2002. Siba (em primeiro plano), Helder Vasconcelos e Eder “o” Rocha (ao fundo).

O espaço abrigou uma festa do colégio onde, por pouco, não passei a vergonha de voltar para casa com um sapato só. Nada de mais: dançando com aquele monte de adolescentes no piso de cima, com pouca iluminação, alguém pisa na borda do meu solado e no passo seguinte já estou descalço do pé direito. Por sorte, acho o par rapidinho, tudo escuro, ninguém viu, desço ao térreo e vejo que as vigas de madeira balançam com o ritmo da música lá de cima.

Alguns anos depois, fui a alguns shows no lugar (sem cortar o cabelo no salão): Funk Como Le Gusta, Los Hermanos, mas o mais memorável foi o da banda pernambucana Mestre Ambrósio em 2002.

O último negócio que recordo de ter funcionado ali foi um restaurante mexicano ao qual fomos uma única vez com a família. No dia seguinte, uma funcionária nos telefona e anuncia que havíamos ganhado uma garrafa de tequila numa promoção que nem sabíamos que existia.

Muitas águas já passaram por baixo dessa ponte e as ruínas continuam lá. A banda Mestre Ambrósio acabou dois anos depois, ninguém lembra em qual festa se deu fim naquela garrafa de tequila e aprendi a não usar sapato novo para dançar.


Sobre o desenho

Este registro da ponte foi feito no 100º encontro do Urban Sketchers Florianópolis que, como várias organizações e empresas da cidade, também usa a ponte Hercílio Luz em seu logotipo. O evento fez parte da Maratona Cultural 2024 e era para ter ocorrido no aniversário do município, em 23 de março, mas foi transferido para o dia seguinte por causa da chuva.

  • Tira linhas Dreaming Dogs
  • Pincel japonês tipo fude
  • Nanquim tipo sumi e água
  • Papel Mix Media Canson Aquarela 300 g/m²
  • A3 (42 × 29,7 cm)

Comentários

4 respostas para “A ponte sempre presente”

  1. Mary Lou Rebelo

    Adorei a história cheia de lances!
    A Ponte é mesmo um marco e temos um carinho especial por ela.
    Seu desenho está muito bom, como sempre e o texto, impecável!

    1. Obrigado, Mary Lou.
      Na época das intermináveis reformas, sempre com novas licitações, eu criticava que devia ter gente ganhando dinheiro e a ponte continuava fechada. Na época, uma amiga de São Paulo comparou com os eternos projetos de despoluição do Rio Tietê. Agora já se pode transitar pela ponte, mas os paulistanos continuam convivendo com o Tietê sujo.

  2. Maria Jaqueline Maffazioli

    Teu desenho e teu texto sempre combinam bem, pq um é muito bom de ver e o outro, muito bom de ler !
    Do alto dos meus 61 anos ainda lembro de passar de carro na ponte, vindo de POA visitar minha tia, quando era (acho que) de ripinhas de madeira, no comecinho dos anos 70. A minha memória é predominantemente auditiva, pq fazia cléclécléclécléclé…☺️

    1. Oi, Maria Jaqueline.

      Interessante como guardamos as experiências de passar pela ponte. Você, com o som dos pneus do carro batendo no piso de madeira. Eu, com a escuridão do túnel de treliças metálicas lá pela metade da extensão.

      Quando chegamos aqui em 1976 a pista já era asfaltada. Devia ser até meio incongruente aquela estrutura metálica com o assoalho de madeira.

      Obrigado pelo comentário!

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