Desenho a caneta colorido com aquarela mostrando a fachada da bicicletaria do seu Valdir, com portas de vidro e revestimento de azulejo.

A quem recorro quando a bicicleta dá problema

Vou andando ao trabalho depois das férias de fim de ano e vejo a bicicletaria do Valdir fechada. Cena improvável. Quem passa pela rua sabe que as dezenas de bicicletas do lado de fora esperando a vez de serem consertadas são uma visão tão certa quanto o muro de pedra onde ficam apoiadas.

Era essa movimentação que eu queria ter desenhado. Mas, em vez disso, me sobra uma porta de vidro fechada e a oficina vazia. O primeiro sujeito que veio puxar conversa me sugere incluir as bicicletas ausentes, mas respondo que registro as construções como elas estão, que não invento nada. Na real, escapei de um trabalhão: há poucas coisas mais difíceis de se desenhar que esse veículo de duas rodas, quadro, guidão, corrente e pedais.

Penso agora que estava na cara que o lugar fecharia. A casa do lado foi demolida há dois meses. Se as coisas seguirem o roteiro, a bicicletaria e a casa colada atrás dela – onde mora a dona do terreno – são as próximas a sumirem.

Foto da mão do autor desenhando um detalhe da porta de vidro da oficina com uma caneta preta
Em vez de uma loja cheia de acessórios, desenho um imóvel vazio

Morei até os dezesseis anos no Itacorubi, o que não me impedia de vir vadiar de magra, como a gente falava, com amigos que moravam no Santa Mônica e no Jardim Anchieta. Naquela época, nos anos 80, seu Valdir já tocava a oficina. Depois que me mudei para o Córrego Grande, em 2006, virei freguês: levava a bike para fazer revisão, trocar peças e comprar acessórios. Até hoje o adesivo amarelo da loja está colado no quadro.

O estabelecimento era pequeno, atrás de uma porta de madeira. Escuro, mal se via o interior. Há vários anos, ele vinha ampliando o negócio junto com a esposa e os filhos. Pegou uma sala para fazer o balcão, construiu o segundo andar e passou a vender bicicletas novas. Nos últimos anos, tinha uma pequena caminhonete, daquelas asiáticas.

Foto da fachada da bicicletaria do seu Valdir com o desenho em frente
Oficina pela qual passou muita bicicleta no bairro, incluindo a minha

O cara da manutenção de piscinas do outro lado da rua recorda que seu Valdir abria o negócio de manhã cedo, às sete horas, deixava de almoçar e muitas vezes encerrava só à noite, levando aro para consertar em casa para não faltar com o cliente.

O filho, que trabalhava com o pai, abriu a Garagem Ateliê Bike Shop, no início do bairro, onde ficava a antiga creperia Ruscello. Semana passada, levei minha bicicleta para uma geral e aproveitei para puxar conversa. Ele lembra que era pequeno quando seu Valdir começou no imóvel que antes abrigou vidraçaria, mercadinho, estúdio de uma banda e loja de roupas infantis. Hoje, está com 42 anos.

— O pai aposentou, mas de vez em quando ainda aparece aqui. Mas está na praia faz vários dias – diz.

Uma matéria na Low Tech Magazine que li há algum tempo reclama sobre os componentes das bicicletas atuais. Antigamente, qualquer oficina de vilarejo trocava uma corrente, uma sapata de freio ou regulava um câmbio. As peças tinham o mesmo padrão. Hoje, cada fabricante lança o seu. Troca ou reparo, só pagando caro numa autorizada, e é difícil para uma oficina pequena manter peças no estoque.

Pelo jeito, seu Valdir se aposentou na hora certa.


Sobre o desenho

Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.

O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.

  • Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
  • Waterbrush Pentel
  • Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
  • Papel Canson Watercolor 300 g/m²

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *