Desenho a traço de um senhor sentado de pernas cruzadas, usando máscara e olhando o celular

Viemos como estávamos

Peste bubônica, câncer, pneumonia
Raiva, rubéola, tuberculose e anemia
Rancor, cisticercose, caxumba, difteria
Encefalite, faringite, gripe e leucemia

E o pulso ainda pulsa

Titãs

Fico um tanto culpado de desenhar as pessoas em seus momentos de fragilidade, mas a espera na emergência do hospital particular já toma meia hora e o livro que eu trouxe para passar o tempo – O Processo, do Kafka – está me deixando agoniado.

Mal-estares nos domingos de manhã sempre nos pegam de calças curtas. E de bermuda cargo, camiseta promocional, tênis de corrida, chinelo de dedo e qualquer outra coisa que estejamos usando. Não é bem a hora de combinar cores ou sobrepor estampas.

Faço parte de uma plateia resignada e aflita, espalhada pelas cadeiras, que não comprou ingresso e nem ganhou convite. Cada um de nós que está aqui espera o personagem de sua peça particular cujo script diz que ele ou ela vai entrar pela porta de correr, sair duas horas depois e recitar sua fala: que vai ter de fazer exames, que precisa marcar um especialista na segunda-feira ou procurar uma farmácia aberta domingo de manhã.

Ou, que não é nada – frase que seria o alívio de qualquer paciente, menos o do hipocondríaco, que vai achar que sua doença terminal só será diagnosticada quando for tarde demais.

Duas cadeiras à minha frente, um homem mais ou menos da minha idade, de máscara abaixo do nariz e a cabeça apoiada na parede, parece passar mal. Ele avisa as atendentes que está com pressão baixa e senta-se no piso de revestimento de pedra. Sábio. Já me aconteceu de desmaiar sentado e acordar no chão com o nariz quebrado ao lado de uma poça de sangue.

Folha de papel com dois desenhos. No de cima, homem de máscara no nariz com a cabeça apoiada na parede. No de baixo, uma mulher sentada olhando o celular (o desenho está incompleto)
Na espera da emergência. A moça se levantou antes de eu desenhar seu cabelo

O que poderia ter acontecido? Pedra nos rins? Exagerou no sábado à noite? Ou é mais um caso de gripe masculina, que deixa o paciente prostrado como se padecesse de falência múltipla de órgãos?

— O sofrimento do homem… — ironiza minha mulher.

— A gente não sabe pelo que ele pode estar passando — contemporizo.

— A pulseira dele é verde igual à minha — delata ela.

É verdade. Se o negócio fosse mais sério, ele teria recebido a amarela ou a vermelha na triagem.

Não deu outra. Foi para o atendimento e volta andando normalmente, falando grosso com as atendentes e dizendo que vai pegar o tíquete de estacionamento no carro e já volta.

Chega uma moça sozinha, movendo-se ereta e sem arrastar os pés. Não deve ser nada relacionado com a respiração ou a circulação. Pulseira verde, também.

Um casal de idosos se apresenta na recepção. O senhor diz que a mulher está se sentindo mal. São atendidos no guichê e depois se sentam, abraçados. Ela é chamada, ele fica assistindo vídeos no celular.

Tenho um aplicativo no tablet que mostra o corpo humano em 3D. Dá para separar os músculos do esqueleto, isolar o sistema nervoso e ver em minúcias a rede de vasos sanguíneos. Era para ser referência de desenho, mas usar o programa me faz lembrar da finitude dessa única vida que temos. Considerando a quantidade de partes que poderia estar fora do lugar ou funcionando mal, é de se agradecer por estar vivo.


Sobre os desenhos

  • Caneta de ponta fina UniPin 0,8 mm
  • Caderno Strathmore Drawing 10,2 x 15,2 cm
  • 130 g/m²

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