Estou em pé, encostado na mureta da padaria Maria Farinha, com a prancheta na mão esquerda e a caneta na direita. É junho, mas o sol forte permite sair de camiseta. A minha é amarela.
Uma senhora franzina se aproxima puxando um carrinho de feira. “Vai perguntar o que estou fazendo e quem sabe elogiar meu trabalho”, penso. Ela para na minha frente, ensaia falar algo, olha de novo para a prancheta e me sai com essa:
— Ah! Achei que você estava vendendo Trimania. — diz, confundindo-me com os ambulantes de colete amarelo que vendem cartelas a quem ainda acredita na sorte. Ela não diz mais nada e vai embora. Se ela tinha um bom pressentimento para o bilhete de hoje, acabo de estragá-lo.
A casa de arquitetura açoriana à minha frente, a do brechó, fica em uma curva da rua João Pio Duarte e Silva onde o asfalto se estreita. Espaço, só para um carro ir e outro voltar. Motociclistas que ultrapassam por cima da faixa central se arriscam a dar de cara com outro veículo ao dobrar a curva. Uma solitária lombada deveria fazer os condutores reduzirem a velocidade, mas um guard-rail na calçada oposta prova sua ineficácia.
O açoriano do século passado, pelo jeito, era um povo que desconhecia o conceito de recuo. Fazia suas casas com a fachada colada na rua ou então gostava que o quintal ficasse todo para os fundos. A calçada do brechó deve ter meio metro de largura. Cadeirantes, gente com carrinho de bebê ou sacolas de compras têm de usar o asfalto. Mesmo quem for magro, caminha com as próprias pernas e tem o privilégio de sair de casa sem carregar nada ainda terá a passagem bloqueada por um irremovível poste digno de um cartum do Quino.
Uma hora, chega um morador local. É um senhor de seus setenta anos. Vê o desenho, compara com a casa e pergunta:
— Vais ampliar ou passar a limpo depois?
Percebo que algo na escala ou no acabamento o incomoda. Como é tarde demais para alterações e a aquarela não permite cobertura, vou direcionando a conversa e ele me conta que o imóvel tem mais de 150 anos (tirando os puxadinhos, imagino) e que só foi trocado o telhado. Ele calcula que brechó que ocupa a casa original está ali há mais de cinco anos.
Explico que estou retratando o bairro antes das inevitáveis mudanças, mas ele não acredita que elas virão rápido. Uma delas é a demolição da padaria Maria Farinha para ampliar o acesso ao Jardim Guarani.
— Essa padaria não vai sumir tão cedo. Tem um monte de questões com os proprietários. Ninguém veio conversar ainda —, comenta. Sigo desenhando com a mão e conversando com a boca até que dou por terminado.
— Você está vendendo? —, pergunta ele.
Digo que, por enquanto, não, que penso em fazer uma exposição de todo o conjunto, mas dou a alternativa dele comprar uma reprodução. Ofereço-lhe meu cartão, mas ele pede que eu anote seu número de celular e mande mensagem.
Um par de dias depois, envio a foto do desenho e pergunto se ele ainda está interessado na cópia. Em seguida, chega a resposta:
“Muito legal teu trabalho. Só acho que as cores não estão tão próximas do real. Qualquer decisão, te ligo”.
Na próxima saída de desenho, levo um talão de bilhetes de loteria para vender. Talvez minha sorte melhore.
Sobre o desenho
Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.
O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.
- Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
- Waterbrush Pentel
- Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
- Papel Canson Watercolor 300 g/m²
- 22,9 × 30,5 cm
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