O temporal com raios, rajadas de vento, granizo e alagamentos que a Defesa Civil prometia para a tarde de sábado se materializou em um chuvisco fraco, sem nem uma brisa que refrescasse o dia quente e úmido do verão de Florianópolis.
Os poucos pingos de chuva que caíram sobre o nanquim ainda molhado, porém, deixaram manchas aleatórias no desenho. Uma gota mais pesada dissolveu o detalhe da fachada que apoia uma fileira de telhas em arco. Ao procurar abrigo com a prancheta na mão, uma poça de tinta escorreu até o fim da folha.
![Desenho com traços cinzas da fachada de uma casa com o semáforo em primeiro plano. Há manchas de respingo de tinta por todo o papel.](https://ivanjeronimo.com.br/wp-content/uploads/2023/03/2023-03-04-usk88-casa-padre-roma-desenho.jpg)
Nossa memória urbana parece seguir a mesma lógica. Alguns meses sem andar por um bairro bastam para perceber que algo mudou. Mas tente se lembrar dos detalhes que haviam antes de construírem o novo prédio envidraçado ou a farmácia de rede e daí nos damos conta de que não é preciso muito para nossa memória das ruas ir embora pela sarjeta.
A casa de fachada curva na esquina entre a rua Padre Roma e a avenida Rio Branco é quase invisível para quem passa de carro. E quem anda por ali a pé tem outras preocupações na cabeça – o horário do dentista ou o que o médico vai dizer depois de ver os exames que estão dentro da indiscreta sacola com o logotipo impresso grande.
Resta a uma antiga moradora que parou para conversar na entrada de um prédio esclarecer que o casarão já foi casa noturna e restaurante. Diz que ela mesma morava em uma casa alguns metros abaixo e teve como vizinhos o o dono do jornal O Estado (o daqui, não o de São Paulo) e o reitor da UFSC. “Esse reitor de agora?”, pergunto, mas erro: “Não… Ele morreu faz tempo”, corta secamente. Mas acerto o nome do proprietário do extinto periódico onde trabalhei em 1997, época em que a falência que viria em seguida já se prenunciava no atraso de salários e na falta de depósito do FGTS, apesar de uma reforma na redação poucos anos antes ter substituído as máquinas de escrever por modernos Macintoshes Performas.
![Detalhe do desenho. Mão do autor segura o instrumento chamado tira-linhas. Vê se respingos de chuva no papel](https://ivanjeronimo.com.br/wp-content/uploads/2023/03/2023-03-04-usk88-casa-padre-roma-foto-2-930x1240.jpg)
São os comentaristas de rede social que dizem mais sobre o imóvel. Uma escreve que a casa pertencia a um certo doutor Adão Bernardes e dona Lili, espelhando o costume do colunismo social local de identificar o marido com título, nome e sobrenome e a esposa, pelo apelido. Outro afirma ter conhecido um morador de nome Capistrano.
Mas a unanimidade da qual todos se recordam é a tal casa noturna Experience, que abriu e fechou as portas na década de 1990. Se ainda estiver por aí, o tatuador do estúdio, que ocupava parte do imóvel durante o dia, hoje pode se orgulhar dos seus trabalhos na pele dos clientes. Vão durar bem mais que meus traços lavados pela chuva e, quiçá, que a própria casa, em cuja janela já está pendurada uma faixa de vende-se.
Sobre o desenho
Produzido no primeiro encontro de 2023 do Urban Sketchers Florianópolis.
Ao que se consta, Padre Roma, preso e fuzilado por ter liderado a Revolução Pernambucana de 1817, nunca pôs os pés em Santa Catarina.
A técnica chamada “aguada de nanquim” ganha outro significado quando se desenha debaixo de chuva.
- Tira-linhas Dreaming Dogs nº 5
- Pincel japonês tipo fude
- Nanquim tipo sumi diluído em água filtrada e água da chuva
- Papel Hahnemühle Veneto 325 g/m² tamanho A3
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