Foto do casarão da esquina da Padre Roma com a Rio Branco tendo em primeiro plano a prancheta segurada pelo autor

Vende-se casa na Padre Roma

O temporal com raios, rajadas de vento, granizo e alagamentos que a Defesa Civil prometia para a tarde de sábado se materializou em um chuvisco fraco, sem nem uma brisa que refrescasse o dia quente e úmido do verão de Florianópolis.

Os poucos pingos de chuva que caíram sobre o nanquim ainda molhado, porém, deixaram manchas aleatórias no desenho. Uma gota mais pesada dissolveu o detalhe da fachada que apoia uma fileira de telhas em arco. Ao procurar abrigo com a prancheta na mão, uma poça de tinta escorreu até o fim da folha.

Desenho com traços cinzas da fachada de uma casa com o semáforo em primeiro plano. Há manchas de respingo de tinta por todo o papel.
Admito que as gotas deram um efeito interessante

Nossa memória urbana parece seguir a mesma lógica. Alguns meses sem andar por um bairro bastam para perceber que algo mudou. Mas tente se lembrar dos detalhes que haviam antes de construírem o novo prédio envidraçado ou a farmácia de rede e daí nos damos conta de que não é preciso muito para nossa memória das ruas ir embora pela sarjeta.

A casa de fachada curva na esquina entre a rua Padre Roma e a avenida Rio Branco é quase invisível para quem passa de carro. E quem anda por ali a pé tem outras preocupações na cabeça – o horário do dentista ou o que o médico vai dizer depois de ver os exames que estão dentro da indiscreta sacola com o logotipo impresso grande.

Resta a uma antiga moradora que parou para conversar na entrada de um prédio esclarecer que o casarão já foi casa noturna e restaurante. Diz que ela mesma morava em uma casa alguns metros abaixo e teve como vizinhos o o dono do jornal O Estado (o daqui, não o de São Paulo) e o reitor da UFSC. “Esse reitor de agora?”, pergunto, mas erro: “Não… Ele morreu faz tempo”, corta secamente. Mas acerto o nome do proprietário do extinto periódico onde trabalhei em 1997, época em que a falência que viria em seguida já se prenunciava no atraso de salários e na falta de depósito do FGTS, apesar de uma reforma na redação poucos anos antes ter substituído as máquinas de escrever por modernos Macintoshes Performas.

Detalhe do desenho. Mão do autor segura o instrumento chamado tira-linhas. Vê se respingos de chuva no papel
As gotas são mais rápidas que o traço

São os comentaristas de rede social que dizem mais sobre o imóvel. Uma escreve que a casa pertencia a um certo doutor Adão Bernardes e dona Lili, espelhando o costume do colunismo social local de identificar o marido com título, nome e sobrenome e a esposa, pelo apelido. Outro afirma ter conhecido um morador de nome Capistrano.

Mas a unanimidade da qual todos se recordam é a tal casa noturna Experience, que abriu e fechou as portas na década de 1990. Se ainda estiver por aí, o tatuador do estúdio, que ocupava parte do imóvel durante o dia, hoje pode se orgulhar dos seus trabalhos na pele dos clientes. Vão durar bem mais que meus traços lavados pela chuva e, quiçá, que a própria casa, em cuja janela já está pendurada uma faixa de vende-se.


Sobre o desenho

Produzido no primeiro encontro de 2023 do Urban Sketchers Florianópolis.

Ao que se consta, Padre Roma, preso e fuzilado por ter liderado a Revolução Pernambucana de 1817, nunca pôs os pés em Santa Catarina.

A técnica chamada “aguada de nanquim” ganha outro significado quando se desenha debaixo de chuva.

  • Tira-linhas Dreaming Dogs nº 5
  • Pincel japonês tipo fude
  • Nanquim tipo sumi diluído em água filtrada e água da chuva
  • Papel Hahnemühle Veneto 325 g/m²
  • 30 × 40 cm

Comentários

15 respostas para “Vende-se casa na Padre Roma”

  1. Cecilia Caldini

    Ivan,quando vejo uma casa interessante,fico imaginando como era a vida das pessoas que viviam ali. Dona Lili terá gostado de morar lá?
    As suas crônicas são ótimas porisso,elas me ajudam a pensar nessa cidade que não conheci e a vida como era então.
    Abraço!

    1. Obrigado pelo comentário, Cecilia!

      Dona Lili com certeza gostava da casa e dos arredores, ainda mais considerando-se que há 50 anos ainda devia haver sítios e outras casas. Acho que era parte da cidade reservada à elite.

  2. Relato super interessante Ivan Jerônimo. A arte , seja em qualquer linguagem que se apresente , dá vida à vida. Tuas linguagens artísticas, a arte visual e a literária, movem o mundo. Obrigada Ivan Jerônimo por disponibilizar teu saber com todos nós!

    1. Agradecimento sou quem tenho de dar por tê-la como leitora!

      Obrigado

  3. Mary Lou Rebelo

    Passo sempre por ali, mas nunca vi a casa habitada. Será que tem fantasmas atualmente?
    Que bom que será eternizada com seu desenho e crônica! // ML

    1. Tomara que os fantasmas deem conta de assombrar quem quer que pense em pôr a casa abaixo.

      Mas eu acho que é só questão de tempo até ela ser demolida. Tem um imóvel ao lado que foi um restaurante que também está desocupado.

  4. Michelli Zimmermann Souza

    Adorei teu texto, tuas reflexões, teu desenho incorporando a chuva, Ivan. Também acho que é questão de tempo pra ela ser vendida… e como é/(está sendo) importante registrar esses locais pelo USK. Mostrar a nossa realidade. Contar História.

    1. Obrigado, Michelli!

      A decisão de desenhar essa casa foi exatamente essa, de preservar a memória das construções anônimas da cidade.

  5. Fabricio Chiquio Boppré

    Puxa, eu ia no Experience, mas quando vi a foto no alto do post confesso que não reconheci, não liguei uma coisa na outra. Faz tanto tempo assim? Meu deus, pior que faz. É esquina com a Rio Branco, não?

    1. Nunca fui ao Experience e não lembro por quê. Amigas e amigos foram frequentadores e parece que lá tocava as coisas que eu escutava na época. Talvez por ser no Centro: desde 93 que moro nos bairros próximos à UFSC.

      Em que época funcionou o bar?

      Sim, fica (ainda) na esquina com a Rio Branco.

      1. Fabricio Chiquio Boppré

        Eu ia com amigos da faculdade, acho que mais pro começo do meu curso, por volta de 1996, 1997, por aí… Era legal. As bandas em geral tocavam covers do rock dito “alternativo” em voga na época, que também era o som que eu mais escutava, mas nunca gostei muito de ouvir bandas tocando covers, então não era bem por esse motivo que eu ia — acho que era mais minha turma mesmo, um público diferente dos outros bares e casas noturnas mais famosas da época (Latitude etc.).

        1. E eu também tinha uns lugares dos quais eu vivia reclamando da música, mas estava lá batendo ponto todo fim de semana. Devia ser por causa dos amigos, mesmo. Uns até tocavam em bandas, daí me sentia na obrigação de ir.

  6. Solange Pereira Young

    Sua narrativa é um deleite…
    Saudades de você🥰

    1. Que surpresa boa um comentário seu, Solange. Por pura coincidência, hoje mesmo estava conversando com Carol de quanto tempo faz que não nos vemos e como seu filho deve estar grande. Faz mais de três anos que não vamos a São Paulo. Na próxima, te avisamos!

      1. Solange do Carmo Pereira Young

        Gabriel está grande mesmo, tem quase 15 anos !
        Lembrem-se mesmo se avisar quando estiverem por aqui. Será um prazer revê-los.

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