O senhor escolhe a mesa que está mais perto do café e senta-se de costas para o balcão. Deixa um livro grosso em cima do tampo de pedra, se levanta, faz o pedido e volta só com uma xícara média de café passado. Resistiu ao pão de queijo, à torta chocolasca e à saltenha.
Abre o livro na metade, quatro centímetros de papel para cada lado. Da espinha da encadernação, as páginas se curvam em duas ondulações imóveis. “Esse vai se demorar aqui”, penso.
Que nada. Toma o café aos goles, põe o marcador de volta, fecha o livro e vai embora. Não chega nem a virar uma página.
Perdi a chance de ver o título. Poderia tanto ser tanto um romance como uma obra de não ficção; modelos de cálculos de resistência de materiais ou ensaios sobre literatura comparada.
Me fez lembrar de uma tirinha da Mafalda, em que o pai chega na sala onde ela está brincando, tira um volumoso dicionário da estante, abre, olha uma palavra, fecha e põe-o de volta. O ritual a faz comentar: “Nesse ritmo, não vais terminar nunca de ler um livro tão grosso”.
Eu poderia dizer o mesmo a esse frequentador matutino que lê uma página por vez, mas, em vez da ironia, ofereço algo construtivo. Sendo os funcionários desse café rápidos demais, poderia lhe sugerir, por exemplo, outros estabelecimentos dessa nossa cidade de vocação turística em que a espera lhe permitiria avançar muito mais na leitura.
Começo pelo memorável episódio familiar de uma Páscoa ou dia das mães nos distantes anos 80, em um rústico restaurante construído em madeira, perto do mar. Ali, ele poderia ter devorado mais de cem paginas entre nossa chegada, ao meio dia, e a primeira garfada no filé de peixe à milanesa, servido às três da tarde.
Caso ele prefira a culinária asiática, a recomendação é o restaurante japonês que nos trouxe o primeiro prato errado e esqueceu do resto do pedido. Neste lugar, ele teria total liberdade de decidir quando dar uma pausa na leitura, bastando lembrar um dos atendentes sobre sua existência.
Depois do almoço, o leitor poderia percorrer o caminho que leva às praias do norte e conhecer um simpático café recém inaugurado que tem o hábito de anotar o pedido e só comunicar a cozinha quando o cliente pergunta, inocente, se o espresso e a água mineral com gás ainda vão demorar muito.
Mas longe de mim querer afastar um cliente tão lucrativo desse café no Centro de Eventos. Afinal, puxando a calculadora e arredondando para uma página lida a cada café passado médio, ele deve ter acumulado umas trezentas xícaras até chegar na metade desse livro tão pesado.
Sobre o desenho
Este esboço faz parte de uma série feita de manhã cedo, no lugar onde costumo tomar um café entre a natação e o trabalho.
As mesas estão sempre vazias. Raramente há mais de uma dúzia de pessoas.
- Caneta ponta fina Uni Pin
- Caderno Schildkröten 16 x 8 cm
- 22 de maio de 2019
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