Desenho colorido de um estabelecimento que vende hambúrgueres. O acesso é feito por uma pequena escada e a porta tem a grade fechada

Sai a coxinha com cachaça, entra o hambúrguer

Todo mundo conhece os efeitos da gentrificação. Mas, além do aumento do preço dos imóveis, da uniformização do perfil sócio-econômico dos novos moradores e dos engarrafamentos, há outra consequência séria sobre a qual pouco se fala: o fechamento dos botecos.

Pé-sujo não combina com a nova proposta que construtoras, prefeitura e câmara de vereadores costuraram para nosso bairro. O novo Córrego é fitness, é cerveja artesanal, é pet-friendly com espaço kids. É grama artificial, poke havaiano e parede instagramável com plantas e neon.

Imagine se o novo morador vai encostar sua camiseta da Abercrombie & Fitch num balcão de fórmica, comer uma coxinha conservada dois dias no óleo e arrematar com uma dose de cachaça se ele pode estar pedindo uma american pale ale e um burger classic com queijo gorgonzola.

Boteco não tem branding, estratégia de mídia, missão e muito menos geração de valor. É o próprio dono que fica no balcão, num sinal claro de que não tem colaboradores para delegar tarefas. Não cria uma franquia e ainda confunde negócios com amizade ao dar fiado aos mesmos frequentadores de sempre.

Detalhe do desenho sendo completado com uma caneta, ainda sem as cores
Projeto arquitetônico simples, mas que dá trabalho desenhar

A antiga Lanchonete do Minga no número 1.172 da rua João Pio Duarte e Silva, era um lugar desses. Para comer, oferecia cachorro-quente e coxinha. Mulheres evitavam passar em frente. Hoje, é uma ghost kitchen. Nem nome tem: na placa, está escrito “delivery” acompanhado de um pictograma de hambúrguer e outro de garfo e faca.

Sento para desenhar e logo arranjo conversa com o próprio dono do ponto, que aparece sei lá de onde. É um ilhéu na terceira idade: pele rosada de sol, camiseta sintética sem manga, correntinha no pescoço e óculos escuros.

Ele conta que há mais de vinte anos abriu o antigo bar do Minga, como era chamado. Cheguei a pegar o estabelecimento aberto quando me mudei para cá. Depois, alugou para uma tapiocaria, que também vendia vatapá. Era um lugar do qual eu gostava de ir, mas durou pouco.

— Os donos se desentenderam — relata.

— Depois eu lembro que veio uma hamburgueria — continuo.

— Mas ficou pouco tempo. Agora aluguei pra esse cara, um gauncho — a última vez que escutei alguém chamar assim quem nasceu no Rio Grande do Sul foi a dona Amélia, senhora que trabalhava em casa, quando referia-se ao genro. Isso faz mais de trinta anos. 

Foto do autor com o desenho no colo e uma paleta de aquarela a retratar o estabelecimento em frente, do outro lado da rua
Estabelecimento já foi tapiocaria e hamburgueria antes de virar ghost-kitchen

Aproveito para verificar uma suspeita:

— E já apareceu construtora querendo comprar o terreno?

— Ah, aparece sim. Mas daqui pra trás, todas essas casas são da mesma família. — responde, apontando para a servidão à esquerda, onde ficam uns seis imóveis encostados lado a lado.

Percebo que o telhado do antigo bar é uma continuação da casa logo atrás. Imagino que seja onde ele more.

— Essa casa é da minha irmã — explica. — Eu que fiz assim, com o telhado da mesma cor, para ficar igual. 

Ele se movimenta para ir embora antes do desenho ficar pronto. Conto que vou publicá-lo em redes sociais. Anoto meu perfil em um pedaço de papel e lhe dou. 

— Ah, eu não tenho essas coisas, mas vou pedir pro meu filho olhar — desconversa e faz uma pausa. — Vou lá ver o jogo do Avaí na TV — anuncia e atravessa a rua fora da faixa de pedestres dez metros adiante.

Foto do desenho em primeiro plano com o estabelecimento retratado ao fundo. Na agropecuária ao lado, percebe-se uma luz acesa
Por pouco não termino o desenho de noite, sob a iluminação pública

Bem no fim de tarde, quando estou nas últimas pinceladas, escuto um som que parece com o de cachorros brigando. Vem de um rapaz vomitando que saiu do banco traseiro de um carro parado na agropecuária vizinha. O motorista está com o braço gordo tatuado apoiado na janela, impassível. Faz menos de uma semana que o carnaval acabou, o cliente deve ter estendido a festa, chamou um carro de aplicativo, mas o mal estar não o esperou chegar em casa. O pessoal na rua exclama “Êita”, “Dá-lhe” e coisas do tipo, mas me solidarizo com o coitado. Já passei por essas e sei que a ressaca moral é a que dura mais.

Fechamento adequado para a sessão de desenho de um antigo boteco. Ou não. Imagino que os antigos frequentadores, com larga quilometragem no balcão, não passassem por um vexame desses.

Quando alguma imobiliária picareta rebatizar o bairro pra Novo Córrego, Córrego Soho ou Big Brook, são essas coisas que vão nos lembrar de como era a vida real no velho Córrego Grande.


Sobre o desenho

Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.

O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.

  • Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
  • Waterbrush Pentel
  • Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
  • Papel Canson Watercolor 300 g/m²

Comentários

4 respostas para “Sai a coxinha com cachaça, entra o hambúrguer”

  1. Mary Lou Rebelo

    Adoro as histórias até mais que os desenhos! — e olhe que gosto muito dos desenhos.

    1. Hehe. Obrigado. Vou adotar como slogan para este blog: “Venha pelos desenhos, fique pelo texto” 🙂

  2. Cecilia Caldini

    Quando mudamos para cá,e lá se vão 37anos, eu vi várias vezes , um senhor vendendo cebolas na Carvoeira.
    Ele tinha uma vara,ou uma especie de cabo de vassoura,que levava nos ombros.
    Nas duas pontas,réstias de cebolas.
    Suponho que ele tinha boa freguesia,porque eu o vi algumas vezes.
    Alguém ainda fala em réstia ?

    1. Nunca mais ouvi essa palavra, réstia, nem vi mais cebolas serem vendidas assim.

      Taí outro desaparecimento desse nosso modelo de urbanização: os vendedores ambulantes que batiam de porta em porta e que não faz muito foram substituídos por carros com alto-falantes.

      Nas ruas em que morei aqui, já vi (ou escutei) vendedor de biju, sacolé e amolador de faca, mas nunca passou ninguém vendendo cebola.

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