O senhor na mesa em frente enfrenta uma taça de vinho igual à minha: cheia até a borda. A culpa é toda do garçom, o que diminui minha culpa por ter pedido álcool em vez de suco de laranja ou água mineral. Se nesse ritmo o velho chegou aos seus prováveis oitenta e cinco anos, não preciso aumentar minha glicemia com bebida doce ou poluir o meio ambiente com garrafa de plástico.
Tirando a tela do celular, observar os outros é o passatempo que sobra para quem come sozinho em lugar público. E aqui estou, analisando o nível de vinho na taça do vizinho de mesa no Sarkis, tradicional restaurante armênio na Villa Crespo, em Buenos Aires. Sou o único que almoça desacompanhado nesse lugar de famílias e casais.
O sujeito na outra mesa à esquerda é brasileiro. Está numa ligação:
— E aí, Claudião! Não atendi antes porque estou almoçando em Buenos Aires. É. Estou testando o lugar para quando virmos juntos pra cá –, conversa ele, em voz alta o suficiente para ser escutado do outro canto do salão. Identifico o sotaque paulistano de classe média. Sua mulher não abre a boca.
Sair andando do hotel, escolher um restaurante no mapa e ser a única pessoa sozinha no meio de tanta gente me faz sentir desconfortável. Logo penso: tem alguém me analisando? Não teria sido mais fácil pedir fast food para entregar no hotel?
Arranjar uma distração ajuda a se sentir menos observado ou combater o tédio. Pode ser um desenho ou até este texto que você lê, que começou a ser escrito justamente no celular, enquanto esperava meu prato chegar no Sarkis.
O desenho é de outro restaurante, dias atrás, quando saí para comer em La Plata, cidade a uma hora de Buenos Aires. Estive lá por quatro dias para o Interaction Latin America, evento internacional de design da experiência do usuário, que é minha área de trabalho.
Desta vez, vim jantar no Green Garden, que a recepcionista do hotel me disse que era “más tranqui” quando lhe perguntei por algo que não fosse um bar.
Aqui predominam os casais e, até onde percebo, não há gente do meu país. Em vez de um casal de senhores bebendo vinho, a mesa em frente é ocupada por um casal jovem com uma filha de uns oito anos. Ela e a mãe se levantam da cadeira e vão à sorveteria. O pai sozinho se revela um sofredor: espreme os olhos com os dedos, leva as mão à cabeça em desespero, se aborrece apoiando o queixo na palma da mão, estica as pernas, recolhe… Será que a crise econômica argentina atingiu suas finanças ou ele se dobra ao peso da dura responsabilidade paterna de esperar que sua mulher volte com a filha?
Peço café e sobremesa para ganhar tempo de terminar o desenho. Como tudo aqui, o pudim vem em um tamanho que mal consigo comer até o final.
E, lição aprendida, aconselho a refletir antes de percorrer uma exposição de arte tonto de vinho, como eu fiz depois que saí do Sarkis. O Malba merecia uma visita mais atenta.
Sobre os desenhos
- Caneta linha fina Unipin 0,8 mm
- Caneta pincel Pentel Color Brush
- Caderno Strathmore Drawing 130 g/m² 10,2 × 15,2 cm
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