Desenho a traço uma praça de alimentação. Em uma das mesas, uma moça escreve algo em seu laptop

Obituário? Nem morta

Tirando os fracassados exercícios de futurologia que são o horóscopo e a previsão do tempo, os jornais lidam com o passado recente. O obituário, aquele anúncio de falecimento impresso a pedido da família, também entra na categoria dos acontecimentos dos últimos dias.

Na Folha de São Paulo, essa seção tem um nome seco: “Mortes”. Para amenizar a aspereza, o jornal publica todo dia um perfil sobre alguém que partiu na véspera. Uma professora universitária, um avô que gostava de viajar, uma senhora que, apesar de religiosa, apreciava uma cachaça… Anônimos com vidas normais e, por isso mesmo, tocantes.

E existe o obituário de rede social. Geralmente é um texto com quatro ou cinco parágrafos, cheio de sentimento, onde quem ficou relembra os episódios com a pessoa que se foi, conta como se conheceram e fecha o post com “valeu, irmão” ou “o mundo vai ficar mais triste sem você”. E, mesmo sob luto tão doloroso, reúne forças para montar um álbum de fotos em que aparece ao lado do agora falecido.

É de se lastimar que nossos conhecidos publiquem esses textos só depois que viramos defunto. É muito trabalho desperdiçado em palavras bonitas que nós – a principal parte interessada – nunca vamos ler.

A moça que está na mesa perto da minha com um laptop bem que poderia, em vez de se perder em devaneios como eu, dar uma solução para essa questão. Por exemplo, pondo em prática a ideia de escrever breves obituários das pessoas que lhe são queridas – enquanto ainda andam sobre a Terra.

Quem sabe ela abriria o processador de texto e começaria pela sua amiga mais antiga, que a acompanhou no colégio, na entrada na faculdade e nas rasteiras da profissão. De início, perceberia que não é fácil escrever um texto de homenagem sem ser piegas, elogioso sem parecer falso, mas, depois de algumas tentativas, pegaria o jeito.

Iniciaria o primeiro parágrafo relembrando o dia em que se conheceram ainda crianças, quando se mudou para a nova rua e logo a convidaram para uma partida de vôlei na rua. Recordaria do pão de trigo com margarina e do café que a mãe dela lhe servia quando ia visitá-la, tão melhores que os de hoje. Contaria das noites de estudo em que a amiga lhe ajudava nas lições de matemática e revelaria sua surpresa quando soube que ela optou pelo curso de história.

O segundo parágrafo seria reservado à carreira acadêmica e à decisão de voltar à universidade, dessa vez no papel de professora. Elogiaria seu espírito combativo e sua dedicação aos alunos. Por fim, arremataria com um “partiu cedo demais”, porque sempre será cedo, mesmo que a pessoa dure cento de dez anos.

Texto finalizado, chegaria a hora de mostrá-lo à amiga, que não só segue viva como está a décadas de sequer pensar em se aposentar. Redigiria um email, anexaria o arquivo e explicaria sua iniciativa, acrescentando que seria uma bela oportunidade de sugerir correções, já pensando no inevitável dia da publicação.

A resposta chega no dia seguinte. Para sua surpresa, vem cheia de rancor e de pontos de exclamação. A amiga reclama que a ideia é um absurdo e a acusa de querer vê-la morta antes do tempo. Escreve que não tem consideração por ter perdido tanto tempo imaginando seu fim.

Decepcionada com a reação ao seu esforço sincero, a moça do laptop joga o arquivo na lixeira do desktop e pensa em voz alta:

— Tomara que se vá antes de mim, porque da minha parte não vai ganhar nem uma vírgula.


Sobre o desenho

Este esboço faz parte de uma série feita de manhã cedo, no lugar onde costumo tomar um café entre a natação e o trabalho.

As mesas estão sempre vazias. Raramente há mais de uma dúzia de pessoas.

  • Caneta ponta fina Uni Pin
  • Caderno Schildkröten 16 x 8 cm
  • 21 de fevereiro de 2020

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