Desenho a traço colorido mostrando fachada de restaurante com trailer na frente

A penúltima locadora do bairro

Se você quiser ser mais discreto enquanto desenha na calçada, uma tática é se encostar em uma árvore, caixa de energia ou coisa do tipo. Minha escolha foi colocar a banqueta ao lado de um poste. Assim, eu ficaria menos visível aos passantes.

Não deu muito certo. Dois frentistas do posto de gasolina vizinho estavam sem freguês domingo de manhã e vieram perguntar o que eu estava fazendo. Um deles disse que gostava de desenhar. Moravam em outro bairro e não se entusiasmaram com as linhas arquitetônicas do restaurante que escolhi registrar.

Eles não sabem que há poucos lugares no Córrego Grande que representem tão bem a passagem do tempo quanto esse na esquina da rua João Pio Duarte Silva com a Joe Collaço.

Aqui funcionou durante mais de vinte anos a locadora Videoteca. Era uma casa de dois pisos, de madeira e vidro, com esquadrias amarelas. Os clientes escolhiam as capas dos filmes no andar de baixo e os atendentes subiam uma escada caracol para pegar a fita VHS correspondente. Quem devolvesse o filme sem rebobiná-lo pagava multa. E tinha uma salinha separada para as produções pornográficas.

Como toda locadora, a Videoteca teve de substituir os VHS por DVDs na virada do século. Além de livrar os clientes de esperar o videocassete rebobinar a fita, a nova tecnologia permitia escolher legenda ou dublagem. Antes, o dono tinha de ter um VHS para cada língua – um drama para os cinéfilos de cidades pequenas, onde era comum que as locadoras só trabalhassem com filmes dublados. Não era o caso da Videoteca, que na transição liquidou as fitas velhas legendadas, mas não me animei a comprá-las – já tinha minha cota de filmes mofados em casa.

Nessa época, a rede chegou a ter mais de trinta filiais em cinco estados. O dono dessa loja, que já não era mais a matriz, decidiu abrir um café anexo. Talvez quisesse só se prevenir contra as mudanças, mas fez o negócio direito. O café tinha preços razoáveis, sanduíches com nomes cinematográficos (“Chicken Little” para a versão com frango, por exemplo) e ficava aberto até tarde da noite, inclusive aos domingos.

Foto do restaurante Da Tia e do trailer de cachorro quente com o desenho em primeiro plano.
Food truck tem estrutura permanente e esconde a fachada do restaurante

A combinação de internet banda larga, DVDs piratas, downloads ilegais e serviços de streaming fez o que a multinacional Blockbuster não conseguiu: obrigar as filiais da Videoteca a entregarem os pontos. A do Córrego encerrou o aluguel de filmes lá por 2012, quando o café ficou com todo o espaço. A última da rede se foi em 2017.

O novo empreendimento gastronômico terminaria sendo vendido. Os novos donos erraram na decoração, no atendimento e fecharam em menos de três anos. A partir daí, o imóvel se tornou invisível.

Hoje, o lugar onde os moradores do bairro iam atrás de drama, comédia, aventura, suspense e até terror deve estar na quinta tentativa de negócio. Passo ali em frente quase todo dia, a pé ou de bicicleta, e não lembro se é um estúdio de tatuagem, hamburgueria ou loja de suplemento. Só me vem à memória que a construção é toda preta e tem um food truck amarelo escondendo a fachada.

Em tempo: a estratégia de se encostar em um poste para desenhar, além de não evitar bisbilhoteiros, tem outra falha. É onde os passarinhos fazem cocô lá de cima dos fios.


Sobre o desenho

Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.

O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.

  • Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
  • Waterbrush Pentel
  • Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
  • Papel Canson Watercolor 300 g/m²

Comentários

3 respostas para “A penúltima locadora do bairro”

  1. anonimo

    Contribuindo para a mini-história geral da Videoteca do Córrego, teve também uma época em que você podia alugar um cartucho de Killer Instinct do Super Nintendo ou jogar uma hora de Road Rash no 3DO. Meu primeiro contato com Ronaldinho Soccer 97 deve ter sido lá.
    E depois do café e antes dessa sequência de restaurantes mal sucedidos acho que teve uma época também que serviam sushi.

    1. Minha lembrança do aluguel de cartucho é muito vaga. Por acaso ficava perto do balcão, no vidro da frente?

      Isso aí me fez lembrar do Atari que meu pai alugou junto com alguns cartuchos lá pela metade dos anos 80. Em poucos dias consegui queimar a fonte ao retirá-lo da tomada.

      Comi sushi algumas vezes lá. Era bom, também. Pena que nada mais deu certo ali.

  2. […] Quase todo bairro mais antigo dessa cidade tem padaria, feira, boteco, farmácia, mercadinho, mecânica de automóveis, centro de saúde e oficina de bicicleta. Há uns dez anos, ainda havia locadora de DVDs. […]

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