Desenho mostrando a fachada e a lateral de uma casa de arquitetura açoriana com uma mureta na frente.

Aquela casa das festas com CDs

Desconheço o interior da maioria das casas que tenho desenhado aqui no bairro. Às vezes, aparece um proprietário para conversar meio por acaso. Mas ainda espero o dia em que alguém vai me convidar para um café e contar a história do imóvel. Como não bato na porta e muito menos peço para entrar nos lugares, isso vai demorar para acontecer.

No ponto mais alto da rua João Pio Duarte e Silva, existe uma exceção. É uma casa em estilo açoriano, pintada de branco e com as portas e janelas azul-escuras. Sei como ela é por dentro porque ali havia jantares e encontro com amigos por volta de 2004.

Lembro de um espaguete à carbonara, que é difícil de dar errado e o nome soa pomposo. Alguém sempre levava CDs: Miss Kittin, Morrissey, Radiohead e alguma coisa de música eletrônica. Curiosa a necessidade, hoje sem sentido, dos visitantes providenciarem a música que queriam ouvir nas festas. Um livro de Dad Squarisi na estante indicava que alguém tentava melhorar a redação ou prestava concurso.

A casa é pequena: sala, dois quartos, cozinha e banheiro. As janelas que se veem da rua são de uma sala e de um dos quartos. O outro ficou sem janela. A cozinha fica nos fundos, um degrau mais baixa que o resto da casa. No teto, um forro branco segue a inclinação do telhado até encostar na cabeça de quem mede mais de um metro e sessenta de altura. A porta da cozinha dá para o quintal cheio de plantas, fazendo esquecer que o bairro segue em verticalização acelerada.

Sento-me para desenhar no recuo da oficina da frente em um sábado à tarde. As poucas pessoas que passam a pé estão se exercitando ou são casais de jovens rumo à UFSC.

Um pai e seu filho andam pela calçada olhando meu desenho e seguem em frente. Outros, quando percebem que estou retratando a casa do outro lado da rua, viram o pescoço, procurando o que há no imóvel que mereça atenção.

Foto da casa retratada com o desenho em primeiro plano
Uma das poucas remanescentes da arquitetura açoriana no bairro, ainda que um pouco alterada

Um amigo artista e arquiteto avisa que o telhado provavelmente não é original. Ele lembra que as construções da época tinham o beiral mais curto e a borda do telhado rente às paredes laterais. Sobre o toldo de plástico, melhor não comentar. Não me parece um elemento típico do arquipélago dos Açores.

Um senhor com quem conversei enquanto desenhava sua casa na semana retrasada me disse que esta casa pertence a um primo seu, não é tombada e está desocupada. Mas tem um carro estacionado no quintal e ontem à noite vi movimentação de gente.

Eu estava certo: publiquei a foto em uma rede social e no dia seguinte recebo um comentário de uma menina que se identifica como a moradora atual e conta que a proprietária é uma senhora que mora com a irmã nas redondezas. O bairro pelo jeito ainda é pequeno, porque já a tenho como contato. Logo chega uma mensagem de um amigo dela que quer comprar uma reprodução para presenteá-la. Despisto a menina para não estragar a surpresa e vendo a impressão ao rapaz.

Não lembro de ter comido espaguete à carbonara depois disso e faz tempo que não escuto Morrissey nem Miss Kittin. Mas recomendo, tanto a quem escreve para prestar concurso como por gosto, o livro A Arte de Escrever Bem, de Dad Squarisi em coautoria com Arlete Salvador, que tem me ajudado a tornar mais legíveis textos como este.


Sobre o desenho

Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.

O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.

  • Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
  • Waterbrush Pentel
  • Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
  • Papel Canson Watercolor 300 g/m²
  • 22,9 × 30,5 cm

Comentários

2 respostas para “Aquela casa das festas com CDs”

  1. Já olhei a casa em várias momentos diferentes, quando passo por ali. O teu registro, tanto artístico como literário, está perfeito. Posso te dizer que fico torcendo para que um dia, sejas convidado para um café , quando estiveres fazendo teu registro artístico. Mereces! E, já esperando a exposição vê o 📕 . Abs

    1. Tomara mesmo que um dia me convidem para um cafezinho com bolo!

      A exposição e o livro irão acontecer, mas preciso de uma boa quantidade de desenhos e textos. Quem sabe para ano que vem?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *