Desenho a traço de uma moça sentada na mesa da praça de alimentação, mexendo no celular

É melhor não lembrar

O esquecimento, na geladeira de casa, do sanduíche que seria meu café da manhã me custa vinte e sete reais. É o que paguei por um croissant de queijo com peito de peru tomate e alface, uma xícara média de café passado puro e uma fatia de torta integral de banana.

Vou intercalando o doce com o salgado, o líquido com o sólido. O croissant, peço ao atendente que coloque-o por alguns minutos na chapa, como costumo fazer em casa.

As mesas ocupadas não chegam a meia dezena. A dona do café comenta sobre a feira de publicações no Rio Tavares, no último domingo, quando nos encontramos por acaso. Conta que foi lá porque um amigo lançou um livro, que também folheei. Elogiamos o nível das publicações e opino que essas feiras são boas para mostrar que é possível publicar seu próprio livro.

Duas mesas à minha esquerda, ouço acordes de violãozinho vindos do celular de uma moça. Lembram um pouco Wish You Here, do Pink Floyd. Impressiona-me até hoje um aparelhinho tão pequeno emitir áudio melhor que muito som portátil da minha adolescência. Chega o refrão:

— Tá difícil esquecer…

Errei, não era Pink Floyd. Mas a letra encerra uma verdade: a canção vai ficar na minha cabeça por dois dias. A mulher continua passando os dedos na tela do celular de capa rosa choque, mas a música continua. Não dá para saber se é o toque de ligação ou trilha sonora de vídeo de rede social.

— Tá difícil esquecer…

Ela se veste com uma certa formalidade. Usa blusa preta de mangas curtas sobre uma camisa branca de mangas compridas e uma calça também preta. Deve ser alguém que tem de lidar com o público e passar uma boa impressão.

Arrisco, sem ouvir o resto da música, e com grande chance de acertar, que o que está difícil de esquecer é uma mulher que largou o sujeito ou outra obviedade do tipo.

Na TV que deixam ligada na praça de alimentação, sudaneses chegam ao porto para escapar do país em guerra, mas são barrados por soldados e cercas de arame. Isso sim é coisa que não se esquece.

Uma busca na internet delata os intérpretes da música, um tal de KLB. Escrevo intérprete porque, nesse tipo de armação de gravadora, quem canta geralmente não compõe. Aliás, imagino que se eu explicasse a um jovem o conceito de armação de gravadora – em que um time de compositores, letristas, músicos de estúdio, engenheiros de som, consultores de estilo e marketeiros pega qualquer pessoa mais atiradinha e solta dinheiro para rádios e plataformas de streaming veicularem o que se costuma chamar de “música de trabalho” – ele reagiria:

— Ué? E qual o problema?

Assim vamos. Há pouco, fui corrigido por colegas da empresa porque critiquei o rótulo “sertanejo universitário” na mesa do almoço. Me baixou o Tinhorão e argumentei que o termo é elitista e preconceituoso contra o interior do Brasil:

— É tudo a mesma coisa. É só um rótulo que criaram para que o jovem dos centros urbanos próximos do litoral ouvissem isso sem se passar por jeca.

Logo rebateram dizendo que é bem diferente, que o sertanejo universitário tem a batida mais acelerada e é mais pop. E ainda me deram exemplos: Luan Santana é sertanejo universitário, Victor e Leo (os dois sem acento agudo) é sertanejo tradicional.

Juro que não tinha percebido.


Sobre o desenho

Este esboço faz parte de uma série feita de manhã cedo, no lugar onde costumo tomar um café entre a natação e o trabalho.

As mesas estão sempre vazias. Raramente há mais de uma dúzia de pessoas.

  • Caneta ponta fina Uni Pin
  • Caderno Schildkröten 16 x 8 cm
  • 26 de abril de 2023

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