Na seita do empreendedorismo-coach, vagas de emprego são uma “oportunidade” que as empresas oferecem aos candidatos. Esquecem, ou fazem questão de esconder, que sem força de trabalho não existe produto nem serviço. E nem empresa.
Essa é mais ou menos a visão que uma longa reportagem reproduzia na TV pendurada na coluna de uma praça de alimentação quase vazia. Sem poder desligá-la nem apertar a tecla mudo, escuto a matéria enquanto seguro o sanduíche de queijo light que trouxe de casa em uma mão e a xícara de café passado que me custou quatro reais na outra. Não coloco açúcar.
O rapaz sentado duas mesas à minha frente está com uma bandeja preta de plástico onde identifico uma caneca grande de cappuccino, um empanado e um docinho. São 8h15 da manhã.
No noticiário, o apresentador anuncia com entusiasmo uma feira de empregos. A atenção do rapaz da bandeja preta não está na reportagem nem na comida, mas na tela do seu celular.
O repórter entrevista o organizador da tal feira, vinte centímetros mais alto que ele e com físico de halterofilista. Falam sobre a quantidade de vagas, os cursos e as portas que o evento abrirá.
Pelo manual do telejornalismo preguiçoso, a próxima etapa é buscar os depoimentos que confirmem o que acabou de ser dito. O repórter se encaminha então para o toldo ao ar livre onde os candidatos estão sentados em cadeiras brancas de piscina à espera de serem chamados. Aponta o microfone para a cara redonda de um rapaz perto dos quarenta anos, com capacete de motociclista no colo.
Torço por uma reviravolta em que nosso entrevistado se vingaria em nome dos milhares de anônimos abordados só para ilustrar uma reportagem. Na minha imaginação, ele mandaria o repórter tomar no cu, se recusaria a ser filmado e protestaria que não estaria ali numa manhã fria se tivesse um bom emprego. Cadeiras voariam, câmeras seriam arremessadas. Mas na vida real, um pouco envergonhado, ele explica que veio atrás de uma vaga com carteira assinada.
O cara do capuccino à minha frente está sorrindo e falando. Percebo o fone de ouvido e consigo ver um rosto de mulher na tela do celular. É uma videochamada.
A transmissão ao vivo agora mostra os candidatos à vaga de emprego se levantando, caminhando devagar para dentro do prédio e subindo uma escada. Me lembrou as primeiras cenas do filme Metrópolis, quando os operários trocam de turno para mais um dia na fábrica.
Sim, estamos bem privilegiados, o rapaz desenhado e eu, porque podemos nos dar ao luxo de tomar nosso café numa manhã chuvosa absorvidos em desenhos e videochamadas.
Sobre o desenho
Este esboço faz parte de uma série feita de manhã cedo, no lugar onde costumo tomar um café entre a natação e o trabalho.
As mesas estão sempre vazias, raramente há mais de uma dúzia de pessoas.
- Caneta ponta fina Uni Pin
- Caderno Schildkröten 16 x 8 cm
- 5 de outubro de 2022
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