Desenho de uma casa térrea, ao lado de uma borracharia

A cunhada artista

A calçada de menos de meio metro de largura me força a desenhar em pé, encostado em uma mureta. Não tem espaço para eu sentar no banquinho, que deixei em casa, no porta-malas do carro.

Uma senhora passa andando por mim e aproveita o espaço estreito para espiar o que estou fazendo.

— Muito bonito — comenta e continua a andar. Estou quase terminando de fazer os traços para depois colorir com aquarela. Dez metros adiante, ela para e retorna.

Ela usa um gorro de lã verde e um xale xadrez, mas parece sentir menos frio que eu, que estou com três camadas de roupa, um cachecol e arrependido de não ter trazido luvas nem nada para esquentar as orelhas. É um sábado incomum de setembro, de sol que vem e some e temperatura perto dos doze graus.

Foto do autor em primeiro plano desenhando a casa, ao fundo
Conjunto de borracharia, casa e padaria que vai dar lugar a um entroncamento viário

— Desculpa te atrapalhar, mas eu estava vendo você desenhar e lembrei de uma cunhada que já morreu, que pintava muito bem. Ela trabalhava na biblioteca municipal.

— Ali na biblioteca pública, na Tenente Silveira?

— É. Eu e meu marido temos um quadro na parede de uma pintura que ela fez do Mercado Público que eu já disse que, se ele morrer antes, quero que fique pra mim.

— Tinha uma escola de arte na parte de baixo da biblioteca, né? Ela estudou lá?

— Não, aprendeu sozinha. Teve até um japonês que queria levá-la ao Japão. Mas ela era muito tímida, muito reservada. Não quis ir.

— Era para casar ou por causa das pinturas?

— Por causa das pinturas. Ficou por aqui mesmo.

Pergunto à senhora se ela mora aqui no Córrego Grande. Ela diz que vive em uma casa próxima à escola municipal, mas cresceu no bairro Saco dos Limões. Lá, trabalhou como lavadeira.

— Eu lavava os uniformes das internas do Coração de Jesus, do tempo da saia bege com camisa branca. A gente usava um ferro de passar a carvão, tinha de colocar um pano para proteger as roupas para não manchá-las. Quem engomava era minha irmã. Hoje é mais fácil. Mas a gente não se livra, né. Hoje eu passo a farda do meu neto que serve na base.

Neto mal acostumado, penso, que não tem vergonha de deixar o uniforme de trabalho para a avó cuidar.

Detalhe da prancheta do autor com o desenho ainda em preto e branco
Desenho antes da aquarela

Conta ela que se mudou para o Córrego Grande há cinquenta anos, depois que se casou. Parte da família do marido era dona do terreno onde fica o Jardim Guarani, pedaço do bairro que ainda resiste à verticalização. Parece uma cidade pequena.

— Bem ali, onde o ônibus faz a curva, tinha um engenho — relata.

— Daquele lado onde ainda tem uns sítios, subindo o morro?

— Não, do outro lado da rua – e lembro dos dias de chuva em que peguei o ônibus no sentido contrário só para me livrar das goteiras do abrigo do ponto e fazia a volta por essa curva cheia de casas, cujos moradores talvez não tenham memórias do engenho.

Enquanto conversamos sobre o destino da casa que estou desenhando, programada para ser demolida nos próximos dias para dar lugar a um entroncamento viário, ela diz que todos os moradores locais estão vendendo os terrenos.

— A gente queria dar uma ajeitada no telhado da nossa casa, mas já conversei com meu marido: estamos com mais de setenta anos, daqui a pouco a gente morre e nossos filhos vão vender tudo. Melhor não se preocupar com isso.


Sobre o desenho

Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.

O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.

  • Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
  • Waterbrush Pentel
  • Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
  • Papel Canson Watercolor 300 g/m²
  • 22,9 × 30,5 cm

Desenhado in loco em 3 de setembro de 2022.

Comentários

27 respostas para “A cunhada artista”

  1. Júlia Siqueira da Rocha

    Grata pelo relato e registro em ✍️ desenho.

    1. O agradecimento é meu pela visita.

  2. Denise Maria Veras

    E aos poucos vamos perdendo os encantos da cidade.
    Parabéns, desenho magnífico 👏👏👏👏

    1. Verdade, Denise. E juntamente com a demolição das casinhas e do comércio de rua, se vai também aquele modo de vida pedestre, de circular e conhecer as pessoas do bairro.

  3. Mary Lou Rebelo

    Que bom conhecer a história das pessoas que passam e gostam de contar um pouco da vida delas!

    1. E que bom que tenho tido sorte de encontrar pessoas dispostas a conversar.

  4. Joedi Nunes

    Boa noite , sou vizinho dessa residência que infeslimente vai ser demolida, apesar de entender pois o bairro esta crescendo demasiadamente e precisa desafogar o trânsito.
    Vai ficar as lembranças,pois assim é a vida.
    Abraço

    1. Será que se houvesse planejamento e restrição a construções sem a devida infra, o bairro estaria do jeito que está?

  5. MICHELLI ZIMMERMANN SOUZA

    Que riqueza de produção Ivan!!! Parabéns! Lindo trabalho!!! Infelizmente as casas serão só memórias…

    1. Oi, Michelli! As coisas em nossa cidade infelizmente caminham nesse sentido. E em vários outros bairros também.

  6. Mara

    Ficarão teu desenho e teu relato como belos registros. Interessante acrescentar essa função às dos Urban Sketches : eternizar um lugar.

    1. Sempre achei que uma das funções do movimento é fazer esse registro. Lembro sempre do livro “Florianópolis de ontem”, do Fossari, que faz exatamente esse registro.

  7. A formação da memória, individual e coletiva, seja da maneira que for, é importante arma contra o esquecimento e uma luta contra o abandono das definições tradicionais de comunidade e cultura. Que trabalho importante estás fazendo @ivanjeronimo. Parabéns.

    1. Oi, Maria Esmênia! Acho que essa é a minha preocupação. Esses pequenos detalhes cotidianos aos quais estamos acostumados são justamente aqueles que não registramos. Espero que daqui a dez anos esses desenhos tragam boas lembranças pra quem se lembrar de como era a vida no bairro.

  8. Fátima Regina Althoff

    Parabéns pelo seu maravilhoso trabalho, além de registrar com um belo desenho, relata uma conversa com uma moradora sobre sua história de vida no bairro. Daqui há pouco terás um livro. Linda forma de registrar um patrimônio perdido! Vc faz arquitetura ou já é um arquiteto?

    1. Oi, Fátima. Estou cercado de arquitetas e arquitetos (mãe, pai, mulher e duas primas, além de amigas e amigos), mas sou designer, formado em jornalismo.
      E você matou a charada: a ideia é publicar e também expor. Não deve demorar!

  9. Joan Kerr Coelho

    Ivan meu Amigo, encantada com o seu desenho e com o seu relato, que maravilha e que Sorte ter encontrado esta Senhora no seu caminho! Adoro conhecer pessoas e suas hihistórias! Você tornou este relato uma obra Prima! Parabéns! 👏👏👏💋💋💋

    1. Obrigado, Joan. Tenho tido sorte de sempre voltar para casa com alguma história.

  10. Aldanei

    Bom dia Ivan! Sou filha da dona Luci, proprietária da casa.
    Casa essa onde nasci e cresci. Além da minha família, ela também faz parte da história de muitos moradores do Córrego Grande. Me emociono com este teu belo desenho. Obrigada pelo registro.

    1. Oi, Aldanei! Que alegria saber que meu desenho chegou até você. Gostaria de saber algumas coisas sobre o imóvel. Pretendo expor os desenhos e publicar um livro. Será que posso lhe enviar uma mensagem?

      1. Aldanei

        Claro. Pode enviar sim!

  11. Lucia Fontes

    Belo relato! Morei no Jardim Anchieta por quase 30 anos! De fato andávamos por toda aquela região à pé! Falta planejamento urbano e preocupação com a mobilidade! Pelo jeito vai alterar significativamente o local e sequer há previsão de uma ciclovia! Deu saudades! Parabéns pelo projeto!

    1. Oi, Lucia! Essa falta de planejamento que a gente não sabe se é incompetência ou se atende a interesses particulares. Esse detalhe da ciclovia foi muito bem lembrado – costumo ir trabalhar de bicicleta e vou só pela calçada. Só quando realmente necessário pedalo pela via.

  12. Fabricio

    Essa casinha que vão derrubar e você registrou é bem simpática, mas o que estão planejando fazer ali (e em frente à creche) até que me pareceu racional. O que é surpreendente, claro. Bem, talvez eu esteja enganado… Mas os motoristas dos ônibus vão agradecer, eles sofrem muito para contornar a padaria abandonada.

    1. Os motoristas de ônibus e também os pedestres que passam por aquela calçada estreita em frente às duas casas com um terreno grande na frente. Quando é comigo que isso acontece, tento desviar da quina do ônibus.

      Pro lado do Imperatriz, talvez a obra ajude, que tem espaço para escoar carros. Mas pro lado do Mais Arroz, tenho dúvidas. Continuará a ser uma pista simples, uma mão que vai, outra que vem.

  13. […] no Córrego Grande. Na vista aérea montada com 3D e Photoshop, o terreno onde ficam a padaria, a casa cor de salmão e a borracharia virou um inóspito triângulo […]

  14. […] ao dobrar a curva. Uma solitária lombada deveria fazer os condutores reduzirem a velocidade, mas um guard-rail na calçada oposta prova sua […]

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