Dois homens de meia-idade conversam dentro de um BMW conversível em uma revenda na Berlim Ocidental pré-unificação. Vestem sobretudo preto e usam rabo de cavalo.
O que está no assento do motorista lê suas anotações em um pequeno caderno de capa dura:
Vinte anos atrás, no dia de hoje, um caça soviético caiu no lago em Spandau. […] Duzentos anos atrás, Blanchard voou sobre a cidade em um balão”
Os personagens são os anjos Cassiel (Otto Sander) e Damiel (Bruno Ganz), do filme Asas do Desejo, de Win Wenders. Revi a produção de 1987 no Mubi há alguns dias tendo como lembranças da primeira vez só um fio de história e umas poucas cenas isoladas.
Na visão de Wenders, os anjos vivem em um mundo em preto e branco e são vistos só pelas crianças. Ocasionalmente, se reúnem para trocar impressões sobre os humanos. Em Berlim, o lugar preferido é na impressionante Biblioteca Estatal.
Damiel, no banco do passageiro, repassa suas anotações sobre os acontecimentos que presenciou:
Uma mulher na rua dobrou seu guarda-chuva quando estava chovendo e acabou ficando encharcada. Um estudante descreveu para seu professor como uma samambaia cresce da terra, e o professor fica impressionado. Uma mulher cega tateia seu relógio, sentindo minha presença.”
Os desenhos do ator
Vemos o ator Peter Falk sentado em uma mesa dentro de um set de filmagem enquanto espera sua vez de gravar. Ele faz uma versão de si mesmo, o protagonista do seriado norte-americano Columbo, contratado para uma produção ambientada na Segunda Guerra.
Falk, que se revela depois um ex-anjo, carrega lápis e um caderno de capa preta, sem pautas. Ele desenha a senhora sentada em sua frente. A câmera mostra o sketchbook aberto, mas não conseguimos ver o esboço. Ouvimos os pensamentos do personagem:
Esse desenho está uma merda. E daí? Ninguém vai vê-lo. Um dia ainda faço um bom desenho. Eu espero. Eu espero. Eu espero”
Em outra cena, outro desenho. O modelo é um rapaz “com olhos de guaxinim, mas com um bom chapéu”.
A câmera enquadra o lápis percorrendo a página. Fico surpreso com o traço espontâneo e a expressividade do rosto. Não encontro nos créditos do filme e nem no IMDb quem foi o dublê de desenhista.
Pesquiso pelo menos provável e descubro que Peter Falk, o ator da vida real, manteve o desenho como hobby durante trinta anos. Então, os desenhos devem ser dele.
O caderno como registro e espera
Nós que, diferente desses anjos de ficção, vivemos em um mundo colorido e sofremos o efeito da gravidade, faríamos bem em registrar nossas vidas curtas. Eles, mesmo capazes de lembrar de fatos imemoriais, escrevem e desenham as trivialidades humanas em simples cadernos de papel.
Deixe um comentário