Quase todo bairro mais antigo dessa cidade tem padaria, feira, boteco, farmácia, mercadinho, mecânica de automóveis, centro de saúde e oficina de bicicleta. Há uns dez anos, ainda havia locadora de DVDs.
Aqui, o Córrego Grande prova que é um lugar completo ao oferecer todas essas conveniências (menos a locadora). E acrescenta à lista um consultório de psicologia logo no começo da rua principal.
O lugar é discreto, como convém a um profissional que cuida de problemas que os próprios pacientes não admitem para si. Quem passa a pé não percebe a placa e quem transita de carro não vê o portãozinho de ferro no muro de pedra. O caminho entre o portão e a entrada do consultório é coberto por um toldo. Uma grande árvore e dezenas de bananeiras ocultam parte da casa.
As casas, na verdade. Só há pouco fui perceber que são duas, isso que eu ando pela calçada em frente ao consultório pelo menos uma vez por dia. Um amigo que mora em um dos prédios vizinhos me alertou quando viu trabalhadores medindo o terreno. Pode até ser que os proprietários planejem construir uma piscina ou ampliar os imóveis, mas do jeito que as coisas andam, melhor registrar o lugar antes que suma.
O consultório deve existir há pelo menos duas décadas – não lembro de uma época em que a placa não estivesse ali. Imagino que seus pacientes não sejam necessariamente do bairro, mas fica mais interessante imaginar que sim. O normal é irmos desatar nossos emaranhados mentais, que criamos para justificar o que fazemos ou deixamos de fazer, em psicólogos no Centro ou na Trindade por indicação de amigos.
Quantas distúrbios e transtornos da gente do bairro já teriam passado pelos seus ouvidos? Já teria ele lidado, por exemplo, com dois pacientes que são vizinhos e vivem em eterna disputa? Sem poder dar sua opinião, por ética profissional, restaria a ele questionar os dois lados para que reavaliassem o valor de suas teimosias.
Quem sabe, ele ouviria os pontos de vistas opostos de duas noras que, integradas à mesma família, seriam obrigadas ao convívio periódico e ao involuntário gerenciamento de crises familiares.
E o morte de alguém do bairro, como seria? Nas semanas seguintes, viriam ao sofá do consultório os relatos de culpas e arrependimentos daqueles que permanecem vivos. Quem sabe até o relato represado de um ex-amante ou as frustrações com a divisão da herança entre parentes que não se falam mais.
Ele escutaria pai e mãe falarem do filho que, em vez de se graduar em direito, engenharia ou ter feito concurso no Banco do Brasil, se contenta em manter um lava-carros no terreno baldio da família. Esse hipotético filho, por sua vez, reclamaria da expectativa jogada em cima de seus ombros que o impediu de seguir a improvável carreira de jogador de futebol local.
O padeiro, no máximo, sabe se sua freguesa é do time do pão integral com quinoa ou do pão doce com farofinha. A feirante consegue distinguir quem come salada de quem só compra toicinho, queijo e cuca. Já o psicólogo, mais que o padre ou o dono de boteco, é quem conhece o espírito do bairro.
Sobre o desenho
Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.
O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.
- Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
- Waterbrush Pentel
- Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
- Papel Canson Watercolor 300 g/m²
- 22,9 × 30,5 cm
Deixe um comentário