Desenho a traço com detalhes em aquarela mostrando o interior de uma loja de acessórios de celulares abarrotada de produtos

Do Senadinho às capinhas de celular

O café Ponto Chic iria completar dez anos quando o desenhista e pintor Hassis entrou ali, escolheu um lugar nos fundos e desenhou o estabelecimento. Era 1957 e os frequentadores estavam no balcão, de chapéu, paletó sobretudo e gravata. Nas mãos, xícaras de café.

As únicas mulheres no desenho são as quatro funcionárias de uniforme. Uma delas está no caixa, outra maneja as alavancas do que parece ser uma máquina de espresso e duas se revezam entre o balcão e a cozinha. Um relógio esboçado com poucas linhas não decide se são três da tarde ou meio dia e quinze.

Desenho a traço, de Hassis, mostrando o interior do café Ponto Chic e seus frequentadores.
”Café Ponto Chic”, guache sobre papel de Hassis. O original, de 1957, mede 30 × 40 cm. Acervo: Fundação Hassis

66 anos depois, chego ao mesmo endereço, na esquina das ruas Felipe Schmidt e Trajano, no calçadão. São nove da manhã de um sábado. No lugar do café, hoje existe uma loja de acessórios para celulares chamada Beep.

Duas coisas não mudaram: as atendentes são todas mulheres e pode se tomar café, que a vendedora me diz que a loja é obrigada a servir. Uma máquina nos fundos providencia a bebida ao se apertar um botão. É só pedir, mesmo que não se compre nada.

— Essa máquina é boa. Ela mói o grão — explica a moça, enquanto me entrega um copinho de isopor.

Foto de Ivan Jerônimo desenhando dentro da loja de acessórios de celulares
Escolhi um lugar que desse um ângulo parecido ao que Hassis capturou em seu desenho (e que não atravancasse o movimento da loja)

O compromisso de oferecer café na loja de celulares – ou em qualquer outra que venha a funcionar no endereço – começou assim que o Ponto Chic fechou em 2004 e se iniciou um movimento para tornar a esquina patrimônio imaterial. A iniciativa não foi pra frente, mas a financeira que assumiu o ponto reservou um canto para o café e deixou cartazes contando a história do espaço.

Há pistas mais tangíveis dessa história no próprio prédio. A porta de entrada tem escrito no topo “Senadinho” em letras maiúsculas. Era o apelido do antigo estabelecimento depois que alguns frequentadores criaram uma condecoração informal, Senatus Populusque Florianopolitanus, ou SPQF, sigla preservada em mosaico português no calçadão em frente.

Os frequentadores da loja atual são mais práticos. Procuram fone de ouvido, caixas de som, conectores, ring lights, teclados de computador, toy art artesanal e, claro, capinhas de celulares. E também solução para suas dúvidas. Enquanto desenho em pé, encostado no mesmo lugar em que Hassis deve ter ficado no antigo café, vou catando conversas no ar.

Foto do caderno com um detalhe do desenho com a mão do artista e a caneta
O desenho em andamento, antes da aquarela

Um senhor entra na loja e pede à atendente que resolva alguma coisa no WhatsApp. Tem a ver com habilitar ou desabilitar um alerta. Em dois minutos, está resolvido.

— Quanto foi? — pergunta ele.

— Não foi nada, é cortesia — fala a lojista.

Não demora e chega outro freguês, também de idade. Não consigo entender o que ele pede, mas ouço a resposta da vendedora:

— Não posso vender pen drive com filme porque é conteúdo pirata. Mas o senhor pode ir a uma LAN house e pedir para eles gravarem pro senhor — responde ela.

— É que eu gosto de assistir filmes quando viajo e lá não tem YouTube. — justifica o velho.

Fico surpreso como as lojistas são prestativas com os fregueses e suas pequenas dúvidas insolúveis. Enquanto as grandes empresas de tecnologia tentam dominar o mercado mundial com novos aparelhos e aplicativos, os pequenos negócios e as pessoas comuns vão criando suas estratégias de contorno.

Foto de todo o interior da loja com o desenho em primeiro plano, para comparação
Uma decoração mais minimalista teria facilitado meu trabalho

Um terceiro cliente, também passando dos setenta anos, se aproxima pela entrada ao meu lado. Deve ter me visto em pé de prancheta na mão e concluído que eu era um funcionário controlando o estoque. Ele me pergunta sobre os ring lights. A atendente está ocupada em outro canto da loja. Sobra para mim explicar: é para fazer vídeos, iluminar melhor o rosto, etc.

— Para que serve, eu sei. Eu quero saber o preço — me interrompe.

Olho para as etiquetas e vou dando os valores arredondados para poupar minhas cordas vocais. R$ 199 vira duzentos, R$ 299 vira trezentos. Ele reage:

— Queria saber o preço, não ter um ataque cardíaco — e vai embora.

Fiquei com pena das vendedoras. Permaneci ali quase a manhã toda, tomei café, conversei com elas, não comprei nada e no fim ainda espantei um cliente. Achei melhor me despedir sem tocar no assunto.


Sobre o desenho

O registro da loja que tomou o lugar do antigo Ponto Chic foi motivado por um convite da escritora Monique Fonseca para escolher uma obra do artista catarinense Hassis e interpretá-la.

O desenho está no livro e na exposição Hassis, Seus Amigos e Eu. São vinte artistas, cada um com sua escolha e perspectiva.

A exposição fica até 20 de janeiro de 2024 na Fundação Hassis, no bairro Coqueiros, em Florianópolis.

  • Caneta tinteiro com ponta tipo dobrada, tipo fude
  • Tinta Koh-I-Noor Document Ink preta
  • Aquarela Van Gogh
  • Papel Hahnemühle Aquarell Anniversary Edition 425 g/m²
  • 24 x 32 cm
  • 29 de abril de 2023

Comentários

5 respostas para “Do Senadinho às capinhas de celular”

  1. Mary Lou Rebelo

    Adoro o seu texto tanto quanto seus desenhos!

    1. Obrigado, Mary Lou. Sou leitor assíduo das suas crônicas no fim de semana.

  2. Fabricio

    Adoro o detalhe da única cor no desenho do Hassis estar do lado de fora do ambiente do café, o amarelo da fachada daquilo que deveria ser, na época, a Confeitaria Chiquinho. É como se ele sugerisse que o ambiente interno seria antigo para sempre. Mal sabia ele que, passado mero meio século, um mosaico de plástico de duzentas cores diferentes estenderia-se pelas paredes do Senadinho. Parabéns, Ivan, pela paciência de desenhar os duzentos quadradinhos, e pelo bom senso de não pintar cada um deles com uma cor berrante diferente!

    1. Olha: desenhar os quadradinhos até que não foi difícil. Complicado foi manter a concentração com tanta coisa acontecendo. Inclusive, errei a perspectiva das lojistas, era para elas serem um pouco mais altas com relação ao cenário.

      A arte do Hassis realmente permite várias leituras. Essa da cor do lado de fora eu não havia pegado. Imaginava que o interior ficou cinza por que o mobiliário fosse escuro mesmo. Ou a iluminação, mais fraca.

  3. […] postar minha arte aqui neste blog só depois que a exposição abrir. Junto com uma crônica, como tem sido de costume. Até lá, […]

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