Desenho a traço colorido com aquarela mostrando um táxi em primeiro plano, com a pintura padrão de Florianópolis, branco, com xadrez azul na lateral e capô traseiro vermelho. Ao fundo, dois prédios roxos, sendo um de esquina

Banco de táxi é o divã do motorista

— E esse endereço pra onde vocês vão, o que é? — pergunta o motorista do táxi que eu e dois colegas pegamos no aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

— É um centro médico. Mas é para uma reunião de trabalho. Pelo que sei, a gente tá saudável — respondo. Com ironia para evitar assuntos difíceis.

Até então, ele vinha falando sobre o carro híbrido que dirige em um programa experimental da prefeitura. O sujeito parece estar se encaminhando aos sessenta anos, tem barba grisalha e um porte que me faz duvidar da sua capacidade de se movimentar fora do carro. Com aquela variante do sotaque paulistano mais puxada pro italiano, ele continua:

— Se tem uma coisa que eu não gosto é de médico. Já briguei muito com minha mulher, que vivia me enchendo o saco para fazer exames, marcar consulta…

— Chega uma idade que não tem jeito, né? Mas é melhor tratar cedo dos problemas. — Aplico o senso comum para ver se a conversa volta às amenidades.

— Eu não quero nem saber. Olha vocês: eu sei que estou com um câncer, mas tá louco ficar sofrendo num hospital. Tem alguma coisa que eu posso fazer? Não. Pra que vou me preocupar? Minha mulher separou de mim, não quer nem mais me ver. Eu que cuido da minha vida.


Foi em outra viagem de táxi, também a trabalho, que uma colega matou a charada: o banco do motorista é um divã de psicanálise. O condutor fica sentado de costas para alguém que o escuta e lhe faz perguntas. Assim, entre lombadas e cruzamentos, ele vai se sentindo à vontade para desenterrar dramas familiares, amores traídos, problemas financeiros e amizades desfeitas. E é fato: a conversa acaba entrando nas queixas e dificuldades.

Acho até possível que o motorista se abra mais com um passageiro do que com um psicanalista. Afinal, o freguês vai sair do carro, bater a porta e nunca mais voltar. Se chegou a algum diagnóstico, bom ou ruim, no máximo vai comentar com alguém em casa. No dia seguinte, a conversa será assunto esquecido.

Foto mostrando os prédios da Praça XV de novembro, em estilo eclético e pintados com cores fortes, como roxo, laranja e rosa. Em primeiro plano, autor segura o caderno com o desenho da vista, com um carro de táxi em frente aos prédios.
Loja Marisa hoje ocupa dois endereços. No da esquerda, funcionou a Panificadora Brasília. No da direita, a livraria Anita Garibaldi, fundada pelo escritor Salim Miguel na década de 1950

Certa vez, chamei um carro de aplicativo e, como eu não tinha pressa e estava de bom humor, perguntei ao motorista de onde ele era.

— Uma cidade mais pro norte de São Paulo que pouca gente conhece: Sertãozinho.

— Hm… – digo, para indicar que prestava atenção — não conheço muito o interior de São Paulo.

Um minuto depois, quando passávamos pelo início do bairro Pantanal, me vem uma lembrança:

— Não era lá que tinha um time de hóquei sobre patins?

— Isso! Você conhece? – pergunta ele.

– É que quando eu era criança, eu tinha um gibi do Chico Bento com uma matéria sobre esse time de lá. Acho que era porque ele foi o mascote, não foi? Tinha um desenho dele de patins jogando hóquei.

— Pois é, agora você me fez lembrar de um monte de coisa. Minha irmã mais nova chegou a jogar pelo time. Participou de campeonato e tudo.

— E como está agora?

— Ah, aquilo ali acabou. Não tem mais incentivo da prefeitura, não é mais a mesma coisa. E minha irmã ficou triste depois que saiu do time.

— Ela continuou jogando?

— Que nada. Ficou meio sem rumo, não queria mais saber de estudar. Depois de um tempo, melhorou, mas passou por uma fase difícil.


Há uns quinze anos, foi minha vez de ser questionado. O motorista contou que coletava frases de seus passageiros em um caderno que deixava preso no painel, com a intenção de reuni-los em livro. Tinha até projeto na internet e tal.

Fui escutando sem dar muita trela, achando tudo muito pitoresco, o sujeito parece uma figura, esse tipo de coisa, até que ele me pediu para escrever no caderno. Revirei as páginas anteriores para ver se encontrava inspiração, mas havia garrancho que nem dava para ler. Os legíveis falavam de obviedades: amor, amizade, saudades, essas coisas. Tudo muito otimista. Ou os passageiros são mais felizes que os motoristas, ou na palavra escrita todo mundo é mentiroso.

No fim, escrevi uma frase qualquer, que nem lembro o que era. Só espero que o livro não tenha sido publicado. Se foi, que a frase não me envergonhe.


Sobre o desenho

Carro parado é ruim para o taxista, mas bom para quem desenha. Enquanto tentava registrar os prédios da esquina da Praça XV de Novembro com a rua Conselheiro Mafra, um veículo estacionou por tempo suficiente para que eu o registrasse.

As fachadas ao fundo são roxas mesmo.

Desenho feito no 112º encontro do Urban Sketchers Florianópolis em uma tarde de sábado, 22 de fevereiro de 202, com o centro pronto para o pré-Carnaval.

  • Caneta tipo brush pen Tombow Fudenosuke
  • Waterbrush Pentel
  • Aquarela Van Gogh em pastilhas
  • Sketchbook Hahnemühle A4 140 g/m²

Comentários

6 respostas para “Banco de táxi é o divã do motorista”

  1. Mary Lou Rebelo

    Adoro conversar com chofer de táxi ou de Uber. Fico sabendo de histórias incríveis! Sou muito conversadeira e, como moro sozinha, quando encontro com quem conversar, aproveito!

    1. Já peguei muita história boa também.

      E certa vez fui desfalcado de uma picanha: fui fazer compras, descarreguei as sacolas e quando cheguei em casa, nada da carne.

      Década de 1990: sem celular, nem aplicativo, não anotei o registro nem a placa, ficou por isso mesmo. Espero que o motorista não seja vegetariano e tenha feito bom uso.

  2. Acho que muito dessas conversas vêm de uma carência de conexões reais também. É um momento histórico de individualismo extremo, de cada um por si, é cada vez mais difícil construir relações.

    Imagina o cara que dirige 12 horas por dia? Não tem muito mais tempo e energia para conexões humanas fora do trabalho. Tem que aproveitar os passageiros. Depois que percebi isso, tentei ser o mais presente possível nessas conversas.

    1. Nunca tinha visto por esse lado. Faz sentido: a profissão é solitária e, pelo menos no caso daqueles de aplicativo, boa parte vem de outras cidades, sem amizades nem família por perto.

  3. Rosangela

    Sou fã de seus desenhos e percepções sobre os lugares. Consigo sentir a energia ali depositada e a sensibilidade em cada traço. 🩵🤍

    1. Obrigado, Rosângela. Desenhar a cidade é também capturar minhas próprias memórias. Abraços!

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