Deve existir um conjunto de normas para se construir inferninhos de rock em Florianópolis, porque não é possível que sejam todos iguais só por coincidência.
Imagino que nessas normas estaria especificado que eles têm de ser construídos em madeira (que é inflamável) com entrada diminuta e escondida (que dificulta a saída em uma emergência e dá a impressão de que está sempre cheio) e com a calçada estreita (para que os frequentadores invadam a via dos carros). Por último, que não imponha critério para a qualidade das bandas.
Na primeira metade dos anos 90, funcionou no número 58 da rua João Pio Duarte e Silva o Berro D’Água, um bar que cumpria todos esses requisitos: era construído com tábuas pregadas e subia-se por uma escada com largura para dois adolescentes magrinhos. Quando a banda era ruim ou o ingresso mais caro, os frequentadores ficavam sentados nas calçadas dos dois lados da rua e atravessavam de um lado ao outro sem muita atenção.
Eu fui um desses habitués. Me mudei do Saco Grande para um bairro próximo, a Serrinha, em 1992, na mesma época em que a espelunca estava no auge. Alguns colegas do colégio moravam pelas redondezas e eu ainda escutava rock pesado. O Berro, como o chamávamos, virou nosso ponto de encontro.
As bandas eram sempre as mesmas. Tinha as dos amigos, como a Void, e as de sempre: Fárady, com o vocalista que encarava igualmente bem Bob Marley e Ramones; Udigrudi, de dois futuros colegas de faculdade, e Overload, de metal. A atração de maior significância foi a PUS (a sigla significa Porrada Ultra Suicida), de Brasília, cuja guitarrista e vocalista ficaria famosa uma década depois em um reality show.
Uma amiga tinha o azar de morar em uma casa atrás do bar. Ela contou que certa noite a família acordou com um barulho estranho na garagem. Foram ver e deram com um sujeito raspando o reboco da parede e recolhendo o pó branco num saquinho plástico. O excelente rendimento e cobertura da tinta devem ter passado batido pelo comprador do envelope.
O bar acabaria fechando em algum momento no final dos anos 90 quando eu estava na faculdade (desconfio que as fracassadas festas do curso de Jornalismo tenham tido alguma responsabilidade nisso). O título de inferninho de rock passaria para o Frank, na Lagoa da Conceição, o Blues Velvet e o Taliesyn, ambos no Centro.
As madeiras do Berro D’Água deram lugar às paredes de alvenaria de um restaurante por quilo, que depois fechou as portas na pandemia. Quando almoçava lá, me pegava tentando lembrar a localização do palco e do bar, mas o inferninho era mal iluminado e minha memória não é tão boa.
O andar de baixo, que na época abrigou açougue e mercearia, até há pouco foi sebo, lanchonete e birô de impressão. Hoje estão todos vazios: o imóvel foi vendido, desocupado e em breve deve ir abaixo.
Sobre o desenho
Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.
O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.
- Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
- Waterbrush Pentel
- Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
- Papel Canson Watercolor 300 g/m²
- 22,9 × 30,5 cm
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