Desenho colorido de uma casa de madeira azul atrás de um muro cinza, com um coqueiro à frente

A casa azul, o coqueiro e o gato

Domingo é domingo, ainda mais de manhã cedo. O final da rua Vera Linhares de Andrade, quase no pé do morro da Lagoa, está vazio.

É um trecho onde o asfalto se estreita e a calçada espreme as pessoas. A meia dúzia de casas fica escondida dos carros. De pedestres, só uns poucos moradores e gente perdida. Isso porque, daqui até o miolo do bairro, existe uma zona de quase um quilômetro com poucas construções e pistas largas que dão justificativa para os automóveis acelerarem. É um pedaço por onde evito andar a pé.

Quando eu tinha dez anos, a rua era um atalho de estrada de terra para quem quisesse ir do Córrego Grande à Lagoa da Conceição. O apego ou a teimosia dos proprietários dessa casa azul, perto da subida do morro da Lagoa, não deixou que ela fosse substituída por um centro comercial ou um prédio. É uma das duas únicas de madeira que sobraram na via principal.

Fotografia da mão do autor segurando o desenho da casa de madeira azul em primeiro plano, com a casa de fundo
Proprietários mantêm uma das últimas casas de madeira da rua. A outra fica próxima à entrada do Jardim Guarani.

Me sento na calçada oposta, a uma distância segura de uma poça d’água. Faz doze graus e não quero que os motoristas me deem um banho. Os dias sem chuva fazem qualquer água no chão ser suspeita.

Sigo o ritual de sempre: escolho um ângulo, abro a banqueta dobrável, apoio a prancheta no colo e começo a desenhar direto com a caneta. Dispenso o esboço a lápis.

Nas poucas horas em que dura o desenho, passam três ou quatro corredores. Alguns me olham feio por eu bloquear a calçada (não os culpo: meu pavio encurta muito quando corro). O carro da casa ao lado entra e sai umas três vezes pelo portão automático da garagem. Na última vez em que ele se abre, aparece uma vizinha que aproveita para falar com a moradora:

— Toquei a campainha, liguei, mandei mensagem e não me atendesse. Tu não queres falar comigo, né? — brinca ela.

A outra abre a capa de couro do celular, franze a testa e passa o dedo algumas vezes pela tela rachada:

— É culpa desse meu celular aqui que não me avisa mais das coisas – justifica.

Já na casa azul que estou desenhando, o primeiro sinal de vida vem às onze da manhã, quando uma moradora aparece no alpendre. Nota que estou ali, mas não diz nada. Em seguida, sai um senhor para regar as plantas da frente com um balde. Minutos depois, escuto uma serra elétrica lá dentro. Deve ser daqueles que, de forma exemplar, tiram o fim de semana para reparos domésticos e não para ficar desenhando na rua como eu. 

De repente, vejo um gato peludo marrom-claro subir na janela. O animalzinho fica um tempo sentado observando seus domínios e logo pula para dentro. Não deu tempo de incluí-lo no desenho.


Sobre o desenho

Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.

O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.

  • Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
  • Waterbrush Pentel
  • Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
  • Papel Canson Watercolor 300 g/m²
  • 22,9 × 30,5 cm

Comentários

2 respostas para “A casa azul, o coqueiro e o gato”

  1. Mary Lou Rebelo

    Como sempre, delícia de texto e desenho ! Céu azul, casa azul, tudo azul… e gato sumido! 😸

    1. Por coincidência ou tendência, a outra casa de madeira da rua também é azul, de um tom bem parecido, até.

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