O sujeito vê aquele monte de gente desenhando na rua Felipe Schmidt, me acha com cara de quem sabe o que está acontecendo, chega ao meu lado na calçada da praça 15 de Novembro e pergunta:
— Vocês estão fazendo uma competição?
Se é competição, escolhi uma posição favorável. Estou protegido do sol pela sombra de um dos prédios. O outono que recém começou trouxe céu azul e não se é mais golpeado por blocos de ar quente. Até a música católica moderna que saía dos alto-falantes da praça por causa da procissão do Senhor dos Passos foi substituída por tambores africanos tocados ao vivo.
O cara veio de mountain bike e deve ter uns cinquenta anos. É negro, alto e corpulento. Explico o de sempre, que nos reunimos pelo prazer de desenhar, e o convido para participar dos próximos encontros, só para ouvir a resposta usual: que ele não tem o dom, só faz boneco de palito, etc.
Acho curioso que ele tenha pensado que estamos fazendo uma disputa de desenho. Justo a atividade em que, faz tempo, aprendi que é inútil se comparar com outra pessoa. É que nem o timbre de voz ou a caligrafia, dá para deixar os “s” mais legíveis ou respirar melhor enquanto fala, mas cada um tem a sua e vai morrer com ela.
Fico imaginando como seria uma competição de desenho. Quais critérios serviriam para comparar um esboço a grafite com uma aquarela detalhada? Usaríamos cronômetro, régua ou transferidor para aferir o resultado? A quem caberia apontar a superioridade do trabalho de alguém depois das vanguardas artísticas do século vinte terem libertado o artista da figuração? E o ganhador, exibiria seu troféu “lápis de ouro” na sala de estar?
Mesmo quem ainda usa rede social já deve ter refletido sobre como esse negócio de compartilhamento contamina nossos hobbies e passatempos. E faço essa reflexão apontando o dedo para mim mesmo.
Antes, a pessoa entrava em uma aula de violão, praticava no quarto e só ia mostrar seu progresso na apresentação de fim de ano. As receitas do curso de culinária só eram conhecidas pela família e pelos convidados do domingo. A velocidade do corredor amador era um assunto que não interessava a ninguém.
E com os reality shows, a coisa piorou. Agora, o negócio é imaginar qual prato ou repertório garantirá o primeiro lugar, sonhar com a fama temporária e fantasiar com a possibilidade de trocar o escritório pelas panelas ou palcos.
Minha vontade é responder com o pedaço de uma crônica do escritor pernambucano Antônio Maria, escrita em forma de carta a um jovem que queria fazer a vida no Rio de Janeiro:
Vida não é páreo e, se é, ninguém vence. Esbaforidos, imprestáveis, chegamos todos empatados.
Antônio Maria em “Vento Vadio”
Tem coisa que é melhor manter a salvo de pressões por performance. Até porque, convenhamos, curtidas são interações rasas. O equivalente digital do tapinha nas costas.
No fim das contas, o que determina o jeito que a gente desenha – ou corre, escreve e cozinha – são aquelas pequenas e múltiplas decisões tomadas a todo instante. Se concentrar, decidir por conta própria a direção do lápis e avaliar sozinho se o negócio ficou satisfatório. É besteira tentar agradar uma plateia inexistente.
Agora, aquele crítico que mora dentro da cabeça, esse não some fácil.
Sobre o desenho
Registro das duas construções no início da rua Felipe Schmidt. Na de esquina, mais antiga, funcionou uma farmácia. A outra é um centro comercial.
Fiz o desenho no 89º encontro do Urban Sketchers Florianópolis em 25 de março. O evento entrou na programação da Maratona Cultural 2023.
Como um teste para uma futura troca de computador, digitalizei o desenho usando o scanner (Epson V600) conectado a um laptop rodando o sistema operacional Ubuntu. As partes foram unidas no Hugin e editadas no Gimp.
- Tira-linhas Dreaming Dogs nº 5
- Pincel japonês tipo fude
- Nanquim tipo sumi
- Papel Hahnemühle Veneto 325 g/m²
- 30 × 40 cm
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