Desenho a traço e aquarela mostrando uma casa azul com parreira em frente

Resistência com frutas e terra preta

O contraste não poderia ser mais evidente. De um lado da rua, o prédio novo, com apartamentos de tamanhos inversamente proporcionais à pretensão do “Studios & Gallery” no nome. Do outro, três pequenas casas – duas de madeira e uma de material – nos fundos de um terreno que pertence à mesma família há mais de cinquenta anos. Parecem separados não pelo asfalto nem pela calçada estreita, mas por uma dobra temporal de trinta anos.

Desta vez, precisei pedir permissão ao morador para registrar sua casa. É que da calçada é difícil ver alguma coisa dentro do terreno grande e cheio de vegetação, mesmo passando a pé devagar, como faço às vezes. Para desenhar, eu teria de entrar no quintal. Por isso, combinei com ele que o avisaria no próximo sábado.

Hoje, um mês depois, pergunto por mensagem de celular se poderia ir lá. O contato foi fácil de achar: ele botou o número de telefone em uma placa anunciando a venda de terra preta.

O terreno fica quase em frente à antiga borracharia, no início da curva onde a rua se estreita. Chego perto das três da tarde e encontro-o conversando com um vizinho mais velho, que brinca:

— Ô! Aproveita e desenha ele! — Aponta para o dono da casa.

— Aí vai aumentar muito o preço — rebato.

Terreno com parreira e duas casas de madeira. Autor segura prancheta e desenho em primeiro plano
Duas casas de madeira e o orgulho do morador: a parreira

O sobrinho-neto de quatro anos que de vez em quando vem se informar em que estágio está minha obra me conta que a casa da direita está abandonada. É a que escolhi desenhar.

— O que tem lá dentro? — pergunto.

— Só sujeira e coisa velha — responde o guri.

Mesmo sem um prumo, dá para perceber que as paredes estão tombando para a direita. Além dos ângulos obtusos e agudos, a porta de entrada está escancarada, as ripas azul claras estão comidas na parte de baixo e tem plantas que nascem no telhado.

O morador fica em pé conversando ao meu lado. Apesar das minhas perguntas sobre a história das casas, parece mais entusiasmado em falar sobre as árvores. Começa pela parreira à minha frente, plantada por seu pai. Explica que as uvas começam a aparecer no final do ano, mas é preciso fazer calor para que fiquem doces. Mostra depois uma árvore alta e me pergunta se eu conheço fruta-pão.

— Fruta-pão… Não lembro, não. — digo.

— O pessoal conhece como fruta-do-conde, mas aqui é fruta-pão — esclarece e aponta para algumas lá no alto.

— É verdade, nem tinha visto. No supermercado costumam ser caras.

— Essas aí, juntei umas cinco ou seis e coloquei uma placa na frente da casa. Rapidinho um senhor passou e comprou tudo.

Parte do papel com desenho, uma caneta e a mão do autor com picada de mosquito saindo sangue
Isca de borrachudo

A terra preta que ele anuncia também é dali mesmo, do quintal. Avisa que tem uma saca prontinha, de uma senhora lhe encomendou e não foi pegar.

— Você teve o trabalho de ensacar tudo e a pessoa nem avisou que não queria mais — comento.

— Ensacar é o de menos, o que cansa é peneirar.

Ele se queixa também de ter sido obrigado a se desfazer das galinhas e galos que criava, tirava até um dinheiro vendendo os ovos. É aí que me dou conta da ausência das aves que foram meu acompanhamento sonoro há dois anos quando me encostei no muro para retratar a borracharia.

Uma das sobrinhas, que também mora no quintal, revela que o avô odiava prédios e não queria ver o bairro cheio deles. Como uma profecia, ele morreu um ano antes de construírem o afetado empreendimento.

Certo estava ele. O morador conta que o pessoal do tal Studios and Gallery reclamou dos galináceos para algum órgão da prefeitura. Devem ter achado que o cacarejar não combinava com o cosmopolitismo da barberia hipster no térreo. Ou algum morador que dorme até tarde maratonando séries norte-americanas exigiu providências do síndico.

Obra de arte pelo jeito não sai tão cedo desse estúdio-galeria. Até porque, pelo tamanho dos apartamentos, só se for desenho em folha A4. E à lápis, que é para não manchar o porcelanato.


Sobre o desenho

Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.

O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.

  • Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
  • Waterbrush Pentel
  • Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
  • Papel Canson Watercolor 300 g/m²
  • 22,9 × 30,5 cm

Desenhado in loco em 22 de outubro de 2022

Comentários

7 respostas para “Resistência com frutas e terra preta”

  1. Dulce Penna

    Maravilha de comentario. E uma tristeza ver a urbanização chegando sem dar chance para a história permanecer…

    1. Oi, Dulce. Sim, estamos testemunhando mudanças muito rápidas em vários bairros da cidade: Carvoeira, Estreito, Trindade… Muita construção indo abaixo sem que a gente se dê conta da história.

  2. Ari

    Ivan, um texto muito legal!
    A casa de meus pais, lá no Estreito, também era de madeira.
    Tínhamos algumas árvores no quintal, mas a que se destacava era o pé de ameixas.

    1. Oi, Ari. Obrigado pelo comentário. O Estreito também parece estar passando pelo mesmo processo do Córrego. Cada vez que vou lá, está diferente.
      Na rua onde morei até os 16 anos, na divisa entre o Itacorubi e o Saco Grande, muitas das casas eram de madeira. Só o banheiro e a cozinha eram de alvenaria. Me dá uma certa nostalgia ver esses remanescentes. Ainda hoje topei com duas na subida do Morro da Cruz.
      (E minha rua tinha ameixeiras também)

  3. MICHELLI ZIMMERMANN SOUZA

    Puxa, é tão triste tudo isso, mas tão lindo os desenhos/pinturas com seus relatos.
    Eu moro em prédio (casa está cada dia mais raro e caro) e adoro escutar animais… Pássaros, até galinha… Rsrsrs…sinal que não está tão urbanizado.

    1. Oi, Michelli!
      Sim, parece que morar em casas será cada vez mais raro, pelo menos nas áreas centrais. E com isso perde-se o hábito de circular a pé pelo bairro, bater papo com os vizinhos e comprar no comércio local (que também está sumindo).

  4. […] mantêm uma das últimas casas de madeira da rua. A outra fica próxima à entrada do Jardim […]

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