— Eu te conheço! Tu é o artista que desenha por aqui. Já te vi antes! — diz o homem que passa por mim pela calçada. Ele fala alto e tem os “s” bem chiados.
É verdade: fim de semana passado ele andava pelo posto de gasolina a um quilômetro daqui, mais perto da universidade. Caminhava meio cambaleante e com roupas velhas, não achei que houvesse me percebido. Desta vez, me cumprimentou, pediu para ver o desenho e me deu parabéns. Agradeci, sorrindo, e ele seguiu andando.
Desenhar conversando não é impossível, mas um pouco da concentração se perde. Que uma coisa ou outra saia de proporção ou que as cores sejam escolhidas só pela fidelidade é até normal. A questão é que no desenho de observação é preciso fazer escolhas bem conscientes o tempo inteiro, daí você tem de escolher se dá prioridade à língua ou à caneta.
O objeto desta vez é a borracharia do bairro, com as colunas de pneus empilhados, o interior mal iluminado com o tanque de água, o macaco hidráulico de metal com rodinhas, o compressor de ar e um sem número de chaves de roda.
Me encosto no muro de uma casa do outro lado da rua e sinto-o balançar com meu peso. Desisto de me apoiar. Afinal, o preço de um muro novo não está incluído no meu orçamento de materiais artísticos. Minhas companhias agora são as galinhas e o galo que desfilam dentro do quintal.
Já precisei dos serviços da borracharia pro carro, mas quando foi a vez do pneu da bicicleta furar, o rapaz me sugeriu a bicicletaria mais acima. Os negócios parece que vão bem, toda hora tem carro parado na frente da porta, que é o único lugar possível de estacionar qualquer coisa. Dez metros adiante, não caberia nem uma moto na calçada estreita.
No terreno ao lado costumava funcionar uma lavação de carro que hoje está com a cerca fechada. Tem uma rampa para troca de óleo e cobertura com telha de amianto para três veículos. Passo aí em frente pelo menos uma vez por dia e não consigo perceber se ainda alguém ainda toca o negócio.
Assim que termino o traço do carro vermelho, o proprietário entra no veículo e vai embora. “Lá se vai minha referência de cores”, lamento. Mas tenho a sorte de vir outro automóvel da mesma cor assim que começo a aplicar a aquarela.
Não demora e aparece mais um para conversar. É um senhor mineiro que mora há trinta anos em Florianópolis, sendo vinte no Córrego Grande. Mas o tempo não lhe tirou o sotaque. Tem a pele morena e entusiasmo na conversa. Conta-me de amigos lá em sua terra que também costumam desenhar.
— Olha, vou falar de você pra eles, quem sabe vocês não conversam, trocam uma ideia?
Sobre o desenho
Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.
O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.
- Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
- Waterbrush Pentel
- Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
- Papel Canson Watercolor 300 g/m²
- 22,9 × 30,5 cm
Desenhado in loco em 20 de julho de 2019.
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