Desenho a traço e aquarela mostrando a padaria Maria Farinha e as casas ao fundo

A padaria sob proteção divina

Em 2016, o folheto de um novo empreendimento no bairro já mostrava as mudanças planejadas para a entrada do loteamento Jardim Guarani, no Córrego Grande. Na vista aérea montada com 3D e Photoshop, o terreno onde ficam a padaria, a casa cor de salmão e a borracharia virou um inóspito triângulo gramado.

Três anos depois, em 2019, ouvi dizer que os acertos para a obra haviam saído. Apressei-me para desenhar o lugar antes que fosse abaixo.

Elegi a padaria, que viria a ser o primeiro desenho da série. Sentei-me em frente ao letreiro da farmácia vizinha às dez da manhã de um domingo de junho. De camiseta preta de manga comprida, passei calor, mas fui poupado dos mosquitos.

Fotografia do desenho da padaria em primeiro plano com o cenário ao fundo
Qual o motivo das duas antenas parabólicas no letreiro de uma padaria?

— Quanto custa esse seu desenho? — pergunta a atendente da farmácia que, ao se aproximar, deu-me a impressão de que fosse reclamar de eu estar bloqueando o luminoso. Defensor irrecuperável das atividades que não dão dinheiro, expliquei que não tinha a intenção de vender.

— Você dá aulas?, me pergunta uma moradora. É magra e aparenta pouco mais de cinquenta anos. Conta que seu pai era publicitário, desenhista autodidata e também se aventurou pelas histórias em quadrinhos.

Comércio local

Deve haver milhares de cenários iguais a esse Brasil afora: uma padaria modesta que nos fins de semana oferece frango assado. Quando me mudei para o bairro, em 2006, ela se chamava Grande Pássaro e os donos não abriam no sábado por motivos religiosos (nem no domingo, aliás). Antes disso, foi uma mercearia de propriedade do casal que morava na casa ao lado.

A padaria ficou um tempo fechada, foi reformada e reabriu com um novo nome, tão estranho quanto o anterior: Maria Farinha. A balconista do caixa costumava me agradecer com um “vá com Deus” assim que eu pagava a compra. Como nunca fui atropelado, assaltado e nem sequer tropecei no caminho até em casa, suponho que esse Deus cuide até dos ateus.

A padaria continuou modesta, sem cervejas artesanais, pães australianos nem presunto de Parma. Fechou em algum momento no meio da pandemia e ficou abandonada, recebendo as previsíveis pixações. O pagamento das desapropriações há poucas semanas veio acompanhado da retirada das janelas e de uma porta de vidro estilhaçada.

Ontem de manhã, ao passar de carro para fazer a feira, uma escavadeira havia recém terminado de demolir a borracharia. A casa e a padaria vieram abaixo na sequência. A operação, assistida pelos moradores, durou menos de duas horas. Um rapaz quase foi atingido pelo braço da máquina enquanto tentava pegar arames de metal.

Algumas pessoas ainda conseguiram salvar ripas de madeira dos escombros. Entre elas, um senhor que passa por mim carregando um feixe nos ombros enquanto tento fotografar a demolição. “Vamos desenhar, vamos desenhar”, cobra ele.


Sobre o desenho

Este registro é parte de uma série que retrata o bairro Córrego Grande, em Florianópolis. Assim como vários outros, ele sofre mudanças decorrentes da especulação imobiliária e de prefeitos e vereadores financiados pelas construtoras.

O projeto vai se desdobrar em exposição e livro. Cadastre seu email para eu informá-la(o) quando houver novidades.

  • Caneta ponta fina Uni Pin 0,8 mm
  • Waterbrush Pentel
  • Aquarela Talens Van Gogh em pastilhas
  • Papel Canson Watercolor 300 g/m²
  • 22,9 × 30,5 cm

Desenhado in loco em 9 de junho de 2019.

Comentários

10 respostas para “A padaria sob proteção divina”

  1. Ivan Jerônimo
    Acompanhando o andar incessante do progresso, ou chame como quiser, o ato de esvaziar um espaço para preenchê-lo com outro produto, conceito ou paisagem…

    1. E assim corre a vida das cidades. Aqui em Florianópolis, com o dedo oculto das construtoras.

  2. Ivan Jerônimo registra tudo o que lhe parece ser logo descartado. Pobre cidade? ou Rica cidade ?

    1. Bem isso! Vejo o bairro mudando com muita velocidade desde que a antiga fazendinha foi ocupada. O bairro está se tornando passagem de carros no trajeto apartamento-trabalho-escola-shopping, não mais lugar de convívio entre cidadãs e cidadãos.

  3. Relato intenso e cheio de personagens e emoções. Importante registrar a história da cidade. Do bairro e de cada edificação que representa tantas histórias de vida. Segue em frente, que no futuro as p3ssoas poderão saber o que existiu antes em cada lugar.

    1. Obrigado pelo comentário, Dulce. Acho que sou apegado ao passado, fico meio melancólico com essas mudanças drásticas no bairro. Enfim, sigo fazendo o registro que ainda faltam uns 15 lugares pra desenhar.

  4. Helena Werner

    Ivan, compartilho com você esse sentimento melancólico cada vez que vejo, leio ou tomo conhecimento da derrubada da arquitetura que habita a cidade para edificações que atendam aos chamados das necessidades contemporâneas. Penso nas histórias de vida de muitos que passarão a habitar somente suas lembranças, no tempo histórico da edificação, na vida gerada em seu entorno e seus significados.
    Ainda bem que existem artistas com a sensibilidade de desenhar antes da derrocada, retendo a memória. Lindo desenho!

    1. Obrigado pelo comentário, Helena. Também fico pensativo quando derrubam as construções antigas da cidade, por mais simples que sejam suas arquiteturas. Algo se perde junto com as paredes e telhados.

  5. […] mudanças, mas ele não acredita que elas virão rápido. Uma delas é a demolição da padaria Maria Farinha para ampliar o acesso ao Jardim […]

  6. […] a pouco, o primeiro desenho da série, da antiga padaria Maria Farinha, completa cinco anos e ainda não terminei a lista. Houvesse vontade de verdade, era só ter saído […]

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