Quando ouvi Itamar Assumpção, achei que essas palavras eram minhas: “São Paulo é outra coisa, não é exatamente amor, é identificação absoluta. Sou eu. Eu não me amo, mas me persigo…”
O que eu coloquei neste livro, não é S. Paulo, sou eu.
Juliana Russo, na abertura de São Paulo Infinita
Zanzando pela loja do Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM, há uns anos, um pequeno livro me chama a atenção. Tem o tamanho de meia folha A4, com pouco mais de cem páginas. Se chama São Paulo Infinita, da artista Juliana Russo.
O desenho na capa me faz querer folheá-lo. Traz em detalhes a passarela que fica dentro da Estação da Luz. Os traços são finos, sombreados com tons de cinza, interrompidos pelo vermelho da camiseta de um senhor retratado em primeiro plano. Ele apoia uma ripa de madeira no ombro, de onde pende uma bolsa, e segura uma pequena caneca nas mãos. Seria um pedinte? Um viajante com pouco dinheiro?
O desenho se prolonga na contracapa. Agora, a personagem é uma mulher andando, de costas para nós. Não leva bagagem, apenas uma pequena bolsa à tiracolo. Sua postura e a maneira como olha o vão sugerem que não tem hora marcada.
Fora do cartão postal
Juliana Russo é ilustradora e também umas das fundadoras do Urban Sketchers São Paulo. Este seu primeiro livro é o diário visual de quem soube retratar a cidade onde vive. Mesmo quem nunca foi lá vai reconhecer o Sesc Pompeia, o Minhocão, o Mercado Municipal e outros pontos famosos.
Em alguns desenhos, há uma justaposição inteligente de elementos, como no templo budista Lohan, onde, como se quisesse mostrar o quanto o lugar está deslocado no meio dos prédios quadrados, retrata numa mesma folha os ideogramas do templo e os pixos nas empenas.
Alguns dos desenhos mais interessantes são os do pequeno comércio, das casas e de seus moradores. Lugares que não constam dos folhetos turísticos – as feiras de rua, as butiques que ainda restam na Augusta e bairros mais afastados do Centro, como Capão Redondo e Freguesia do Ó.
Podemos não identificar tudo o que ela desenha, principalmente as casas e entradas de prédios (afinal, é São Paulo), mas dá para distinguir elementos familiares nas casinhas e grades de prédios, locais onde poderia ter morado uma avó ou um tio.
Interiores
Russo abre seu caderno e tira a tampa de sua caneta em lanchonetes, restaurantes, antiquários, museus, ateliês e até dentro de um ônibus (e vale dizer que os motoristas de São Paulo dirigem como se o pedal de freio lhes diminuísse o salário). São essas oportunidades que a artista aproveita para construir pequenos inventários visuais de seus achados: as portas da avenida São Luís, os itens à venda em um antiquário e as fachadas das casas. O desenho urbano é exercício e também registro,
Personagens
O mesmo cuidado em caracterizar fachadas, ornamentos e letreiros, Russo aplica nas pessoas. É o vendedor ocioso atrás do balcão de um restaurante vazio, a mãe com a filha na feira, o pregador na Praça da Sé, a moça de preto no Masp… Tipos anônimos, mas familiares por quem já andou pela capital paulista.
Seja pela diferença de traço ou por se repetirem em outros cenários, algumas das figuras humanas parecem ter sido aplicadas na edição. No miolo, por exemplo, o senhor de vermelho da capa está em outro desenho, enquanto a estação tem outros personagens. Acompanha o livro um cartão postal que acaba servindo como um glossário desses tipos que encontramos pelas páginas.
Os rios debaixo da cidade
Quando tirei o livro da estante para escrever este post, reli o texto manuscrito que abre o livro, na página seguinte a uma vista do comércio em frente à casa da autora, na Zona Oeste.
Três casas adiante por debaixo do asfalto passa o rio Caiubi. É assim que são tratados os rios na minha cidade, estão todos escondidos sob nossos pés.
Voltando ao desenho, percebo uma discreta anotação que não havia visto antes: “Aqui passa um rio”, em azul, por cima da calçada. Folheio o livro e vou encontrando a mesma nota em outras páginas: no vale do Anhangabaú, no Parque da Água Funda e no Sesc Pompeia. Um leitor desatento (como eu, na primeira leitura) deixaria passar batida essa informação, que até sugere um novo livro que, daí sim, percorresse o caminho dos rios soterrados pela grade urbana.
Edição
O formato do livro e a orientação dos desenhos parece espelhar o caderno original da autora. Quase todos são horizontais, muitos aproveitando a página dupla aberta.
Mas aqui, o formato de panorama feito originalmente para paisagens, subvertido para uma cidade verticalizada como São Paulo, permite capturar o que os prédios deixam ver pelas frestas.
Ao colocar o caderno em pé, Russo registra o terraço do Martinelli com o mar de telhados ao redor (um dos desenhos de que mais gosto do livro), a Galeria do Rock e uma melancólica estação de trem na Mooca – dos trilhos próximos até a chaminé de uma fábrica no horizonte.
O tratamento dos desenhos optou por preservar a textura do papel original em vez de se embranquecer o fundo, como às vezes se faz.
O volume foi publicado pela editora Gustavo Gili em 2015 e está esgotado. A filial brasileira fechou no ano passado, vítima da crise econômica, mas parte do catálogo migrou para a Editora Olhares.
O segundo livro de Juliana Russo, Pequenos acasos cotidianos, ainda pode ser encontrado em livrarias que trabalham com autores independentes e já está na fila para ser resenhado.
São Paulo Infinita
Juliana Russo
Editora Gustavo Gili, 2015
104 páginas
21,5 × 14 cm
Capa dura e miolo em papel offset
ISBN: 9788584520381
Este texto é parte de uma série de resenhas de livros sobre urban sketching. Veja todos os posts.
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