A escuridão invade o salão. Raios de luz entram pelas frestas e revelam a poeira suspensa. Insetos caminham pelas mãos. Crianças e adolescentes gritam. O assoalho de madeira range, reclamando de cada passo.
Não são cenas de um filme de terror. São minhas lembranças do Cine Ritz, que passou por meio século de mudanças na economia, na ocupação urbana de Florianópolis e nos hábitos de seus moradores, nos quais eu me incluo.
A sala foi inaugurada em 1935 no número 110 da rua Arcipreste Paiva como Cine Rex, propagandeado como um espaço luxuoso, com mobiliário moderno e bar estilo parisiense. Em 1943, o empresário Jorge Daux adquire o imóvel e muda o nome para Ritz.
É possível que um dos primeiros filmes a que assisti no cinema tenha sido lá: E.T. O Extraterrestre, em 1982 ou 83. O Ritz exibia os lançamentos mais populares, com filas que dobravam a quadra. Tempo do reinado dos Trapalhões e, anos mais tarde, da Xuxa. No início dos anos 90, sofreu a decadência dos cinemas de rua, passando a exibir filmes B e pornôs até fechar, em 1995, não antes do tombamento do prédio, em 1986.
A programação apelativa me levou a preferir o Cecomtur (quase em frente, na mesma rua), o São José (na rua Padre Miguelinho) e o Carlitos (na João Pinto). Minhas últimas duas atrações cinematográficas no Ritz foram esquecíveis: uma imitação barata do seriado Super Máquina e uma ficção científica meio ciberpunk, meio poeirenta, chamada Hardware, que fui ver influenciado por uma resenha na revista Set.

Depois dos filmes de quinta categoria e de sexo explícito, vieram as sessões de descarrego. Em algum período entre o fechamento da sala e os anos 2000, o cinema teve o mesmo destino comum que tantos outros no país: virou templo evangélico, fenômeno que o diretor recifense Kleber Mendonça Filho capturou no documentário Retratos Fantasmas.
O imóvel na época pertencia ao Badesc (Agência de Fomento do Estado de Santa Catarina), que em 2007 o vendeu para a Cúria Metropolitana. Em 2015, a prefeitura tentou comprar o prédio para transformá-lo em centro cultural (que eu duvido que daria conta de gerenciá-lo, mas isso é outra história). Mas os padres acabaram fazendo negócio com um grupo educacional privado, o que dá ao menos o consolo da gurizada voltar a frequentar a antiga espelunca.
O mobiliário do cinema foi pulverizado e apareceu em lojas de usados do centro. Hoje, há casas e estabelecimentos na cidade onde se pode sentar nas mesmas poltronas do Ritz.

Pergunte a alguém sobre o fim dos cinemas de rua e ouça várias teorias: especulação imobiliária, abandono do centro, envelhecimento de seus moradores, aparecimento das locadoras e da TV a cabo, concorrência com shopping centers, entrada de grupos exibidores norte-americanos, avanço das igrejas neopentecostais, games online, mudanças dos hábitos da classe média… Difícil separar o que é causa do que é efeito.
Com o ingresso nos shoppings chegando aos cinquenta reais e o estacionamento ultrapassando os trinta, faz tempo que frequentar uma sala de projeção deixou de ser uma diversão popular.
Mas nenhuma sala de shopping dá aquele choque de trocar a ficção pela realidade ao sair direto para a rua no fim da sessão. Sentia uma leve decepção e uma sensação de ausência meio indefinida conforme sentia os paralelepípedos sob os pés e esbarrava nas pessoas. A sensação é parecida com a de acordar num lugar estranho achando que você está em seu quarto.
A trajetória do Ritz daria uma saga: construído como um cinema chique, ficou popular, tentou atrair frequentadores apelando para o pornô, se converteu em templo evangélico, foi comprado por um banco estadual, que o passou à igreja católica, que finalmente o vendeu a um colégio particular.
Será que esses estudantes sabem onde estão pisando?
Sobre o desenho
Registro feito no 92º encontro do Urban Sketchers Florianópolis em uma tarde de um sábado de junho de 2023, com o colégio fechado.
- Pena de bambu
- Pincel japonês (fude)
- Nanquim tipo sumi
- Papel para aquarela
- 28 × 37,5 cm
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