“Palácio da memória” é uma técnica que consiste em imaginar uma casa real ou imaginária e associar cada item que não se quer esquecer a um cômodo, corredor ou escada. A ideia é que, ao percorrer mentalmente os ambientes, a pessoa consiga recuperar as informações que guardou.
Sei de antemão que comigo isso não daria certo. Sou daqueles tipos a quem os japoneses dão o sugestivo nome de “desafinados de localização” (hōkō onchi). É comum eu sair de um banheiro em uma casa que não é minha e virar para o lado errado do corredor. A voz sintética do navegador por GPS é companhia imprescindível quando dirijo sozinho no continente. Por essas e outras, deixo a tarefa de construir um imóvel inteirinho na cabeça para arquitetos, que vivo cercado deles.
Mas se eu experimentasse essa técnica, chamaria-a de casa da memória em vez de palácio, para não ficar parecendo coisa de reinos misteriosos e ilhas exóticas, ainda que eu realmente more numa ilha – que de exótica não tem nada – onde existe não um, mas dois palácios: o Cruz e Sousa e o da Agronômica.
Do que jeito que minha mente funciona, essa casa da memória teria cômodos sem função, separados por paredes levantadas não se sabe com qual critério. Haveria aposentos arejados e abertos, outros permanentemente trancados. Alguns estariam eternamente à espera de alguém consertar uma maçaneta quebrada ou não teriam nem porta.
Inútil achar que as lembranças estariam organizadas bonitinhas em seus ambientes: objetos trocariam sozinhos de cômodo e o tempo deixaria as coisas se acumularem de tal jeito que seria melhor deixar tudo como está. Para dificultar, essa construção estaria diferente cada vez que eu entrasse nela.
Nessa casa, que mais pareceria a da letra de Vinícius de Moraes, cada coisa puxaria outra e tudo seria desconexo. Um cheiro de xampu traria a textura de uma caixa de papelão, o gosto de coentro remeteria a piso de pedrinhas, uma música faria lembrar do adocicado amargo de vinho de garrafão.
Nela estariam guardados o cheiro ilusório de um golpe no nariz, o momento em que a garoa de inverno vira flocos de neve, o gosto de água fervida do primeiro beijo, a ferroada sem aviso de uma água viva, o tombo de skate em um half-pipe, um ônibus errado voltando do shopping Itaguaçu aos doze anos e a sensação de uma corrente fria a um quilômetro da praia.
Florianópolis é uma cidade que tem sua própria Casa da Memória. Fica em um casarão na rua Padre Miguelinho, no Centro, e preserva o patrimônio histórico e cultural da cidade. De certa forma, é onde ficam as coisas que nós, moradores, não deveríamos esquecer.
Quando a desenhei estava fechada, mas parece fácil se localizar lá dentro.
PS: Memory Palace também é o nome do podcast do jornalista americano Nate DiMeo onde ele recupera personagens anônimos e fatos históricos ou curiosos de seu país. Uma seleção de episódios foi editada em livro no Brasil.
Sobre o desenho
Registro feito no 107º encontro do Urban Sketchers Florianópolis em uma tarde de sábado, 31 de agosto de 2024. Como sempre acontece quando desenho na rua, lembro de tudo que vi.
- Pena de bambu
- Pincel japonês (fude)
- Nanquim tipo sumi
- Papel Canson XL Aquarelle 300 g/m²
- 29,7 × 42 cm (A3)