Fotografia do livro “De perlas y cicatrices”, de Pedro Lemebel. A capa mostra a foto do tórax do autor com um colar feito de aparelhos de barbear descartáveis, parecido com um adereço indígena.

De pérolas e cicatrizes

Em 2023, parei de fazer minha retrospectiva anual dos livros, quadrinhos e filmes, mas De perlas y cicatrices, livro do chileno Pedro Lemebel, foi a surpresa de 2024 e vale o registro.

A obra foi uma indicação de um casal de amigos de Santiago. Entramos com eles em uma livraria no bairro de Ñuñoa que tinha desconto para moradores locais – no caso, eles. Uma boa ideia, ainda mais que em 2014 o preço do livro no Chile beirava os cinquenta reais (patamar que alcançamos em 2021).

Abro o livro sem saber o que me espera. A capa não sugere muita coisa: uma foto em preto e branco do tórax de um homem com um colar de aparelhos de barbear, parecendo um adorno indígena. É um registro que a fotógrafa Paz Errázuriz fez do autor, que também foi artista performático.

No prefácio, Lemebel explica que as crônicas, veiculadas em um programa que ele tinha na Radio Tierra, não foram feitas para serem lidas, mas ouvidas. A publicação, segundo ele, perde sua voz, as pausas e a trilha sonora. Mas os escritos se tornam perenes, ganham a materialidade que as ondas de rádio não têm.

E materialidade e perenidade são duas qualidades necessárias. Cada crônica é um verbete bem pesquisado e um acerto de contas com as figuras que apoiaram a ditadura de Pinochet: celebridades, apresentadores de TV, padres que também são apresentadores de TV, ex-atrizes mirins e socialites. Muitos deles com livre trânsito no Chile de hoje. O autor dá o nome aos bois, como diz a canção dos Titãs de 1987, que fez algo parecido.

Lemebel não é um escritor sutil ou que se comisera. Pelo contrário, seu tom é rancoroso, vingativo. Lembra fatos, desenterra condutas. Difícil ler sem fazer paralelos com figuras nefastas daqui.

Ele também reserva parte de seus textos para recuperar a biografia dos opositores do regime que foram assassinados ou torturados. Relembra as circunstâncias de seus desaparecimentos e restaura a dignidade de quem teve de manter uma vida reclusa por causa de boatos espalhados pelos órgãos da repressão e reverberados pela imprensa chilena.

Alguns de seus personagens inspiraram a luta coletiva por direitos, enquanto outros são desconhecidos, como um colega de escola da zona sul de Santiago, Margarito, que sofria humilhações e teve um fim trágico.

Imagine se tal conteúdo iria ao ar na metade dos anos 90 em uma emissora de rádio brasileira, todas de grupos de comunicação com o rabo preso com as oligarquias locais, quando não de propriedade direta delas. E apresentadas por alguém que sempre se declarou homossexual. Se nos dias de hoje o posicionamento não chama atenção, é importante recordar que Lemebel teve boa parte de sua vida pública sob a ditadura.

Tradução

Entre a minha compra do livro em 2014 e a leitura em 2024 se passou uma década. Nesse período, assim como aconteceu com seu conterrâneo Alejandro Zambra, de quem também trouxe um livro na viagem, Lemebel foi editado no Brasil. A Zahar traduziu Poco Hombre – Escritos de uma bicha terceiro-mundista postumamente – o autor morreu em 2015 de câncer de laringe. Antes disso, a extinta editora Cesárea já havia lançado o e-book Essa angústia louca de partir em 2014.

A tradução é uma alternativa às edições chilenas, difíceis de se encontrar e, para mim, de se ler. Foi o livro em espanhol que mais me exigiu consultas ao dicionário.

A publicação de Poco Hombre fez com que a imprensa brasileira passasse a escrever sobre Lemebel: Paulo Roberto Pires na Quatro Cinco Um, Rodrigo Casarin no UOL e Alexandre Figueirôa em OGrito!.

E há o documentário Lemebel (disponível no Prime), dirigido por Joanna Reposi, que deixa o artista apresentar sua história através da voz e das imagens de suas performances.


Serviço

De perlas y cicatrices (De pérolas e cicatrizes), de Pedro Lemebel. Capa de Pedro Lemebel (performance), Paz Errázuriz (foto) e Cristóbal Anrique (design). Santiago, Chile. Seix Barral. 2013. 290 págs.