Todas as empresas em que trabalhei na vida eram do tipo planta aberta, sem paredes, vidros nem divisórias separando as mesas. É um bom arranjo para consultar o colega ao lado ou pescar coisas no ar sem perguntar. Mas, quando você precisa se concentrar para ler as trinta páginas de um documento técnico ou editar uma planilha com centenas de linhas, o layout não ajuda.
Acredito ter uma boa capacidade de concentração: no falido jornal O Estado criava infográficos e atualizava a longa tabela de commodities com os preços da arroba do boi gordo e da tonelada métrica de ferro enquanto ouvia os diagramadores falarem de assuntos mais adequados a um boteco. Já desenhei logotipos e personagens em uma empresa japonesa que mantinha um radinho sintonizado numa emissora de J-pop a menos de dois metros do meu ouvido.
Mesmo com essa adquirida resistência contra a sonoridade ambiente, às vezes dá vontade de pegar o laptop e a cadeira e me enfiar em uma câmara anecoica.
Como nenhuma empresa oferece essa comodidade aos funcionários, coloco o fone de ouvido na orelha e recorro ao site myNoise que, entre agradáveis sons de cachoeira, do mar da costa da Irlanda e do ronronar de um gato, dá a opção de um ruído constante de um café no horário de pico. E você pode ajustar o volume de cada parâmetro em separado: o assobio da máquina de espresso, a conversa dos frequentadores e até o tilintar dos talheres na cozinha.
Mas solução tecnológica é como uma mesa bamba. Serra-se um pé, os outros saem de nível.
Percebi isso ao me dar conta de que essa ambientação sonora, tão reconfortante como uma média com leite em copo americano, está sumindo. Embora a máquina de espresso continue chiando ao vaporizar o leite e o barista ainda golpeie o porta-filtro na borda do lixo, o burburinho de conversa humana e de garfos batendo no prato estão em extinção. Para mim, a culpa é da tecnologia. Nesse caso, dos fones de ouvido e celulares.
Não que esta praça de alimentação seja um café vienense, de onde vão sair um Klimt ou um Freud, mas qualquer conversa sobre amenidades olho no olho com outro humano é mais enriquecedora que ouvir um pastor evangélico, coach ou influencer berrando dentro de orelhas abafadas por espuma. Mesmo a observação desatenta do ambiente estimula mais os sentidos que ficar com o olho fixado a vinte centímetros de uma tela do tamanho de um cartão de crédito.
Dia desses, algo curioso: as mesas estavam todas tomadas por jovens e o silêncio era ainda maior. Mas ninguém segurava o celular – as mãos e braços se movimentavam, a gesticular um para o outro. Olhei para os crachás e para as estampas nas sacolas e vi que estava no intervalo de um evento acadêmico de Libras. Cujos participantes, aliás, conversavam muito mais que nós, que ouvimos com a orelha, falamos com a boca, mas preferimos passar o dedo em uma tela.
Sobre o desenho
Este esboço faz parte de uma série feita de manhã cedo, no lugar onde costumo tomar um café entre a natação e o trabalho.
As mesas estão sempre vazias. Raramente há mais de uma dúzia de pessoas.
- Caneta ponta fina Uni Pin
- Caderno Schildkröten 16 x 8 cm
- 28 de fevereiro de 2020
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