Pode ser em uma aula de pintura, na visita guiada ao museu, no meio de uma palestra ou interrompendo uma conversa com o artista. Uma hora, alguém vai soltar a questão “sim, mas o que é arte?” e nada mais se resolve.
Quem pergunta já tem – e acha que sabe – a resposta. A intenção na verdade é outra. É consolar um amador para que acredite que seu esforçado trabalho pode, sim, pertencer ao cânone da arte ocidental. É validar manifestações de fotografia, histórias em quadrinhos, grafite, culinária e até games. E dá-lhe revirar o cadáver de Marcel Duchamp, que há mais de cem anos colocou um mictório em uma sala de exposição.
Buraco negro onde tudo entra e de onde nada escapa, a questão encerra a conversa e inviabiliza a crítica. A partir daí, qualquer juízo é válido e, por isso mesmo, inútil.
Quando uma pessoa fizer essa provocação ao discutir uma obra artística, agora existe um jeito bem rápido de resolver o impasse: vá a uma agência dos correios e tente enviá-la ao exterior. A obra, não a pessoa.
É o que me aconteceu ao tentar despachar um desenho para a cidade de Córdoba, na Argentina. Tratava-se de um estudo para uma ilustração do livro El Cuerpo, cuja destinatária, a editora e pesquisadora Magdalena Almada, foi quem me convidou a participar da publicação (as versões finais estão em exposição no Memorial Meyer Filho, em Florianópolis, até 28 de junho).
Embalei o desenho em um tubo e pedi à Carol Grilo, minha mulher, para enviá-lo quando fosse ao correio.
Chegando na agência, o funcionário pergunta-lhe sobre o conteúdo:
— É um desenho – responde ela.
— É arte? — pergunta o atendente, na lata. — Porque se for arte, o Iphan cobra uma taxa.
— É só um desenho do meu marido. Não é ninguém conhecido, ele nem é artista — argumenta ela. E quero acreditar que a depreciação da minha obra tenha sido a estratégia dela para economizar a taxa.
— Olha… Daí vou ter de ver. Posso abrir?
O rapaz abre o canudo, desenrola o papel, analisa e dá o veredito:
— É arte. Você vai ter de acessar o site do Iphan, pagar a taxa e voltar aqui.
Envaidecido mas confuso com todo esse rolo, decido que o Iphan vai ter de esperar enquanto tentamos o envio em outra agência. Lá, acontece o mesmo impasse. Na discussão do que é arte e se o Iphan deve receber ou não a taxa, o funcionário chama sua chefe.
Carol explica a ela que o desenho é de autoria do próprio remetente, um mero artista sem renome. A gerente olha para o trabalho e diz:
— Então não precisa pagar. Não é assim um artista conhecido, um profissional…
“Que acinte!”, exclamo, quando Carol me conta da conversa ao chegar em casa.
Porém, mesmo sem a taxa do Iphan, o frete sai caro para mandar uma folha de papel A3 a Córdoba, tão distante de Florianópolis quanto Brasília.
Desisto e levo o desenho comigo em uma viagem de trabalho à cidade argentina de La Plata um par de meses depois. Na primeira hora livre, vou ao correio. O atendente não pergunta nada e ainda sugere economizar o envio juntando o tubo com um livro que eu enviaria separado. Ele enrola tudo em um saco plástico preto, põe na cesta, eu pago, ele me dá o comprovante e vou embora.
Hoje, eu digo: arte é o que o funcionário do correio brasileiro diz que é arte.
Sobre o desenho (ou a arte)
- Nanquim tipo sumi e tinta branca Dr. Ph. Martin’s Bleedproof White sobre papel
- 29,7 × 42 cm
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