Faz um tempo, um amigo postou no Twitter uma foto de um livro aberto. O título é provocativo: CAPS LOCK – How capitalism took hold of graphic design, and how to escape from it (Como o capitalismo tomou conta do design gráfico e como escapar dele). Não conhecia. Uma rápida pesquisa mostra que a obra fez um certo alarde quando foi lançada em 2021.
O autor, Ruben Pater, é um designer gráfico holandês que já trabalhou em estúdios e de forma independente, e atua como educador na Royal Academy of Arts, em Haia. Este é seu segundo livro.
Pater trata das várias formas pelas quais o design, principalmente o gráfico, tornou-se parte do sistema capitalista.
Muitos designers, eu incluso, costumam criticar a publicidade e o marketing por serem tão comerciais, argumentando que a prática do design, com seus padrões visuais, módulos e métodos de pesquisa, deve ser “puro”, ou seja, livre de interesses que não atendam às necessidades de usuários, leitores e consumidores. Pater aponta o dedo e afirma que o design, sim, é tão “culpado” de integrar o modo de produção capitalista quanto essas duas disciplinas.
O design é obcecado por positividade. Uma grande parte do design gráfico é fazer empresas, eventos e até objetos parecerem mais divertidos usando associações positivas. [tradução minha]
Peças na engrenagem
O autor dedica um capítulo para cada papel que, segundo ele, os designers assumem na engrenagem econômica: escriba, engenheiro, branding, vendedor, trabalhador, empreendedor, amador, educador, hacker, futurista, filantropista e ativista. Em cada um desses capítulos, Patel dá o contexto histórico e identifica de que forma a profissão serve aos interesses das grandes corporações, muitas vezes com prejuízo da sociedade e dos próprios designers.
Se no papel de escriba o objetivo é dar credibilidade a documentos e serviços financeiros – muitas vezes tornando-os inacessíveis àqueles sem acesso – no de trabalhador o autor lembra que os designers fazem parte da força de trabalho tanto como um operário de chão de fábrica ou técnico de gráfica.
Paixão é o que faz dos designers trabalhadores ideais neste estágio do capitalismo. Eles são flexíveis, estão sempre disponíveis, se vestem bem, não fazem greve, não se sindicalizam e se inspiram por demanda.
O autor prossegue nas outras atividades, analisando temas como as diferenças salariais de gênero e de etnia, o papel dos sindicatos, os monopólios nos softwares que usamos e o rebranding de empresas públicas privatizadas.
Enquanto surgiam as primeiras super marcas, as políticas neoliberais dos anos 1980 levaram à privatização de quase todos os serviços públicos, levando a outra forma de captura dos bens comuns.
Mesmo no último papel, O designer como ativista, Patel permanece cético:
O ativismo como mudança social é reduzido a tarefas agendadas por algumas horas na semana. Sem dúvida, são gestos generosos e admiráveis, mas isso é o que são: gestos. Eles dão a aparência de benevolência enquanto mantêm o status quo firmemente no lugar.
Vias de escape
Não é nesses capítulos, porém, que ele mostra alternativas. Isso fica para o final, quando o autor entrevista participantes de seis coletivos de design:
- Brave New Alps (Itália)
- Common Knowledge (Inglaterra)
- Cooperativa de Diseño (Argentina)
- Mídia Ninja (Brasil)
- Open Source Publishing (Bélgica)
- The Public (Canadá)
Essas iniciativas funcionam dentro de uma lógica de cooperativismo e coerência entre prática profissional e pessoal. Diagramar um livro, desenvolver uma fonte tipográfica, cozinhar o almoço ou dar cursos aos vizinhos são atividades igualmente importantes.
Uma tese central do livro é o commons, palavra que originalmente designa o pedaço de terra destinado ao uso livre dos camponeses, em contraste à produção nas terras do senhor feudal. O autor enxerga nesse conceito uma possível estratégia para desenvolver práticas que ofereçam subsistência aos profissionais e tragam valor para a comunidade.
Criar bens comuns não significa criar fontes ou trabalhos de design gráfico online gratuitamente. (…) Assim como um jardim urbano precisa ser defendido e cuidado – do contrário será comprado por empreiteiros ou o solo será esgotado pelo uso – os bens comuns de design precisam ser cuidados e defendidos. (…) O bem comum não pressupõe dar tudo de graça sem limite, mas estender os direitos de uso sob certas condições, sobre as quais Fournier escreve: ‘que não devem pôr em risco a sustentabilidade do sistema de onde vem o recurso’.
Questões
Considero difícil, porém, no estágio atual da economia, que todas as atividades de design se organizem maneira comunal. Mais ainda se todo o entorno se conserva igual.
Há demandas por serviços complexos para projetos de grande porte, que exigem integração com fornecedores e profissionais de outras áreas, independentemente se vivemos em economias capitalistas ou socialistas. Por exemplo, um sistema de sinalização para uma rede de metrôs, o design de informação para o site do governo de um país ou a interface do software que gerencia os voos de um aeroporto internacional. O próprio autor reconhece a questão:
Não significa que tudo deva ser local ou em pequena escala porque isso evidenciaria uma profunda falta de conhecimento sobre a complexidade da economia atual. Nós vivemos em uma realidade altamente complexa, e sistemas globais de troca de informações e recursos são necessárias por várias razões.
Apesar do viés anti-capitalista, o autor não defende o comunismo como solução. Ele reconhece que China e Rússia (que não são comunistas, a meu ver), têm vários dos problemas que ele expõe, notadamente com relação ao esgotamento dos recursos naturais.
A puxada de orelha no livro é direcionada aos designers (gráficos, de produto e de UX), mas vejo que outras profissões são igualmente culpadas de “colaborar com o sistema”. Se um administrador público exige o preenchimento de um documento online a pessoas que nunca tiveram acesso a ele, não está ajudando a projetar um sistema de exclusão? Quando um engenheiro intencionalmente especifica componentes de pouca durabilidade em um produto, não está contribuindo com a obsolescência programada?
Empresas, em princípio, pagam mais a quem dá mais lucro. Existe ainda uma aura de glamour que envolve designers que projetam produtos de alcance mundial para grandes corporações.
Nesses casos, muitas decisões não são tomadas só pelos designers, mas obedecem à lógica do mercado e ao lucro dos acionistas. Ainda que o autor não dê todas as respostas sobre como implementar esquemas alternativos, o livro levanta questões que servem para que nossa prática profissional seja feita com mais senso crítico e menos deslumbre.
Edição
Por uma contradição, li CAPS LOCK no serviço de assinatura de ebooks de uma megacorporação de tecnologia. Não recomendo, a não ser por economia: há problemas como imagens separadas das legendas por várias páginas, citações na mesma tipografia do texto, notas de rodapé sem links, etc. A conversão parece ter sido automática, mas não reclamo. Sei, por experiencia própria, que a plataforma paga pouco aos produtores de conteúdo, mesmo que o leitor tenha chegado ao fim do livro.
No site da editora, por outro lado, a obra está disponível em papel ou e-book. Lá você também encontra um apanhado de links para entrevistas e artigos sobre a obra. Vale a pena ler a conversa com Steven Heller, da Print.
O primeiro livro do autor, Políticas do design (2016), foi traduzido pela Ubu.
Serviço
CAPS LOCK – How capitalism took hold of graphic design, and how to escape from it
Ruben Pater
Editora: Valiz, 2021 (edição em inglês)
ISBN: 9789493246034
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