Desenho a tinta preta mostrando o saguão de espera de um aeroporto, com algumas pessoas sentadas em mesas, uma luminária pendendo do texto e garrafas em primeiro plano

Conversas com Hugo Pratt

Meio dormindo meio acordado, chego na imigração em um pedaço do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, que mais parece um guichê de rodoviária de interior. O oficial mal olha pra minha cara e carimba meu passaporte sem interromper a conversa com seu colega ao lado. Assim foi minha primeira chegada à Europa, em 2020, numa viagem a trabalho.

O próximo voo sairia cinco horas depois. Sem ter mais o que preparar para o compromisso que me espera no destino, visito a banca de revistas. No display de quadrinhos, descubro um álbum que não conhecia de Corto Maltese, personagem criado pelo italiano Hugo Pratt, que morreu em 1995. Pego a edição e me revolto ao descobrir que a história é nova e não leva sua assinatura.

“Não se respeita mais nada”, penso.

Foto de capa do livro “Hugo Pratt - O desejo de ser inútil“, onde está escrito: Memórias e Reflexões - Entrevistas com Dominique Petitfaux - ed. Relógio D'Água. A capa é preta com letras vermelhas e brancas, com uma foto vertical de Pratt, já na meia idade, num campo, com um casebre ao fundo.
Edição portuguesa encontrada sem querer em Lisboa

Cinco anos depois, em uma visita rápida à livraria Bertrand, em Lisboa, me deparo com uma biografia de Hugo Pratt em forma de entrevistas com o curioso subtítulo: “O desejo de ser inútil”. Folheio e vejo que tem vários desenhos. Se o texto não for lá grandes coisas, vai valer pelos esboços.

As aventuras do marinheiro Corto Maltese se passam nas franjas das grandes e pequenas guerras no início do século vinte. Época em que ainda dava para imaginar ilhotas e confins que não aparecem nos mapas.

Capa do álbum de quadrinhos “A balada do mar salgado”, de Hugo Pratt
Edição da L&PM, de 1983, com as páginas fora de ordem

Passei a infância com o primeiro álbum do personagem, A Balada do Mar Salgado – que meus pais compraram para eles, não para mim – em pé na estante. Demorou, mas assim que resolvi me aventurar em suas duzentas páginas, fui fisgado.

Lendo a biografia, vou ligando algumas pontas.

Na conversa com o entrevistador, Dominique Petitfaux, Pratt fala pouco sobre técnica, roteiro ou desenho. O assunto é a sua vida. Começa pelos avós e termina com um posfácio póstumo em que o Petitfaux resume os último cinco anos do autor.

Eu já sabia que as histórias de Corto Maltese deviam muito à vida do quadrinista desde que li uma entrevista publicada em 1987 pela Folha de São Paulo em uma edição especial do extinto caderno Folhetim dedicada às HQs.

A biografia reforçou essa ligação. Morou na Itália, Etiópia, Argentina, Inglaterra, França e Suíça, sem contar os países aonde foi fazer pesquisa, caso do Brasil e Angola.

Página aberta do livro “Hugo Pratt - O desejo de ser inútil”, com desenhos de soldados de diversos países
Esboços do capítulo dedicado à passagem de Hugo Pratt pela Etiópia

Aos dez anos, ele e a mãe vão à Etiópia para se juntarem ao pai durante a invasão italiana, em 1936. Fez amigos entre os africanos e desiludiu-se com a Itália – sua família havia aderido ao fascismo, segundo ele, de forma muito ingênua. Quando deixa a Etiópia aos 16 anos, credita ao imperador etíope Haile Selassie, retornado ao trono, o fato de estar vivo.

Ao voltar à Itália, já não acreditava na pátria, na bandeira, nas ideologias. Forjara a minha própria ética, que consistia em ser fiel aos meus amigos

Nos quadrinhos, o personagem Corto Maltese é cínico e desconfiado, tem amigos e desafetos dos dois lados das trincheiras.

A vida na ficção

Há muitos relatos autobiográficos ou jornalísticos nos quadrinhos – de Joe Sacco, Marjani Satrapi, Alison Bechdel e Didier Lefèvre, por exemplo – mas poucos autores transformaram uma vida incomum em matéria para a ficção.

De volta a Veneza, Pratt encontraria a Itália ocupada pelos alemães no fim da Segunda Guerra. É um período atribulado: volta à escola, é preso pelo exército invasor e, depois de solto, é forçado a se alistar na polícia marítima alemã para deserdar três semanas depois. E é nessa época que começa a publicar histórias em quadrinhos.

Página aberta do livro “Hugo Pratt - O desejo de ser inútil” com texto na página da esquerda e pequenos retratos na da direita
Personagens que o autor encontrou na Argentina

Ficaria na Itália até que um compatriota sediado em Buenos Aires oferece-lhe um contrato. Trata-se do editor Cesare Civita, que fundou a Editora Abril na Argentina. Seu irmão, Victor Civita, faria o mesmo no Brasil anos depois.

Em Buenos Aires, desenha histórias do roteirista Héctor Oesterheld, como Sargent Kirk e Ernie Pike. Para Ticonderoga, contrata uma assistente, Gisela Dester, que depois assumiria a arte após o retorno de Pratt à Europa, tornando-se uma das mulheres pioneiras nos quadrinhos de lá.

A relação de Pratt com Oesterheld, no entanto, não foi muito boa, apesar da colaboração em vários títulos. Também deu aulas na Escuela Panamericana de Arte, fundada por Enrique Lipszyc, de quem ficou amigo. Lipszyc mudou-se para São Paulo na década de 60, para onde transferiu a escola. Hoje, ela ocupa um belo prédio, onde ocorreu o 1º EPA Super Heroes Comic Con em 1994, meu primeiro evento de quadrinhos.

Entre os xavantes

1964 não foi o melhor ano para Pratt ter vindo ao Brasil. Perde o encontro com os irmãos Villas-Bôas, é interrogado no DOPS, mas se livra da prisão. Ao seguir os passos do explorador desaparecido coronel Fawcett, o aviador encarregado de transportá-lo o abandona por três semanas na Amazônia em uma comunidade xavante.

Na Bahia, conhece o candomblé: “Eu acabara de chegar, não havia falado com ninguém, e diziam-me sobre a minha própria vida coisas muito privadas”. O trecho está no terceiro capítulo, dedicado aos seus interesses pela metafísica e pela religião.

Em outra passagem, conta que conversou com o escritor colombiano Álvaro Mutis sobre as semelhanças entre Maqroll (personagem de Mutis) e Corto Maltese. Lembrei do meu aniversário de 2005, quando um casal que nunca mais vi e nem está mais junto me presenteou com um livro de Mutis, A última escala do velho cargueiro.

E por que o subtítulo, “o desejo de ser inútil”? Está no final do livro, na última fala do autor, quando ele afirma que em épocas diferentes sofreu patrulhas ideológicas e conquistou o respeito dos intelectuais:

…é verdade que os mundos que eu visito ao sabor das minhas buscas podem por vezes ser julgados pueris ou inúteis, (…) mas quando penso naqueles que me acusavam ser inútil, e no que eles julgavam ser útil, então, perante eles, não tenho apenas o prazer de ser inútil, mas também o desejo de ser inútil.


Sobre o desenho

  • Caneta tinteiro tipo fude pen (ponta dobrada)
  • Pentel Fude pen
  • Caderno Hahnemühle Sketch & Note
  • 14,8 × 21 cm
  • 125 g/m²