Todos o conhecem pelo seu apelido, Valdinho, tão usado que seu nome é uma incógnita. Não que alguém se importasse se fosse Valdecir, Vanderval ou Valdir.
O apelido no diminutivo engana sobre a sua aparência. Beirando os 70 anos, alto e robusto, parece um vilão de filme policial de Hollywood, ou um comissário – papéis reservados aos atores mal encarados. Tem os traços duros e o queixo inflexível, como deveria ser um comissário de polícia cinematográfico.
Sempre esconde parte dos cabelos brancos com um boné de Fórmula 1. Usa-o por gosto, não porque seja careca. Com exceção do boné, sempre azul ou vermeIho, as roupas são simples e de cores discretas, brancas ou cinza-claras.
Passa despercebido, a não ser por aqueles que têm o costume de prestar atenção nas figuras anônimas do cotidiano. É comum encontrá-lo perambulando de prédio em prédio pelo bairro. Quem sai de manhã para ir ao trabalho pode vê-lo subindo o morro da rua principal. Ao voltar do expediente, essa mesma pessoa talvez esbarrasse com ele saindo de algum conjunto de prédios.
Sua única atividade visível é conversar com os vigias e zeladores. Como morador de longa data, fazia amizade com os pedreiros e serventes quando o prédio ainda estava em construção. Depois do edifício pronto, os novos funcionários achavam que ele fazia parte do corpo de trabalhadores antigos, um encarregado de qualquer coisa. A falta de comunicação e a inércia se encarregavam de fazer com que Valdinho tivesse livre trânsito dentro dos prédios.
Não demorava e ele logo se oferecia para fazer algum pequeno conserto de graça. Um portão com a pintura descascada, um registro vazando ou uma dobradiça emperrada. Aqueles pequenos reparos que não costumam ser pauta na reunião de condomínio.
— Mas isso aqui tá ruim, hein? — comenta ele em seu tom de voz alto e esbaforido.
— Ninguém liga. O pessoal reclama, não — responde o zelador, já prevendo incomodação.
— Isso aqui pra dar um jeito é dois toques — e se mete a tentar resolver o problema, como se fosse um encanador ou serralheiro profissional.
A última coisa em que colocou a mão foi no portão de um conjunto logo no topo da subida da rua. A dobradiça havia entortado, fazendo com que a base do portão riscasse um sulco no piso de cimento.
— Me empresta umas ferramentas que eu arrumo isso fácil, fácil — oferta.
— Vou ver — responde o zelador que, com visível má vontade, vai até o canto da guarita e pega uma caixa azul de ferramentas.
Na primeira tentativa, Valdinho consegue lascar o cimento onde a dobradiça está fixada. Depois, faz um buraco no cimento até conseguir soltar a dobradiça com todos os parafusos. A que estava com problema e a outra, soltando o portão.
— Espera que eu só vou um pouquinho lá em casa pegar uma dobradiça nova – avisa. Constrangido pela gentileza forçada, o zelador acha que seria grosseria reclamar do portão jogado no chão.
No dia seguinte, Valdinho aparece com uma dobradiça totalmente diferente do modelo original. Arma-a no portão e coloca-o de volta, com cimento e areia emprestados de uma construção ali perto.
O portão acaba ficando inclinado e difícil de abrir e fechar. Além disso, o serviço fica sem reboco, um remendo.
— Pronto! Ficou meio torto mas tá melhor que antes. Daquele jeito não podia ficar mais — afirma, orgulhoso.
O zelador queria só se livrar da figura, com receio da reação do síndico. Mas sentiu que deveria agradecer, ao menos para evitar outras ideias para melhorias.
Valdinho, sério, parecia um neurologista que tinha acabado de concluir uma delicada cirurgia e agora avaliava o paciente. Para ele, sua ocupação unia o útil ao agradável: fazia novos amigos e ajudava onde achava necessário.
Afinal, o que fariam sem ele por perto?
Sobre a pintura
Esta postagem resgata duas peças feitas em momentos separados, para finalidades distintas. Ambas retratam o bairro da Serrinha, em Florianópolis, onde morei por 15 anos. A crônica original, reeditada aqui, foi um exercício de ficção proposto pela professora Sonia Maluf na faculdade de Jornalismo da UFSC a partir da observação de pessoas ou situações reais. A pintura é de setembro de 2001, época em que fiz a oficina de pintura no Centro Integrado de Cultura – CIC, sob coordenação de Mara Santos.
Materiais
- Acrílica sobre tela
- 47 × 84 cm
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